Um dos maiores educadores do século XXI - José Pacheco, criador da revolucionária Escola da Ponte, em Portugal - é uma das presenças confirmadas para esse fim de semana na Bienal Internacional do Livro do Ceará. O português participa do lançamento do livro Diálogos Educacionais: Carta de Princípios da Rede Nacional de Educadores Conspiradores Românticos (Editora Dummar) - que tem textos inspirados em seus trabalhos e em seus ensinamentos. Mesmo passados mais de 40 anos desde a fundação da instituição de ensino, ainda há quem estranhe a forma de funcionamento. "O que ela ensinou: que é possível passar de práticas fósseis fundadas no paradigma da instrução (professor no centro) para práticas características do paradigma da aprendizagem (protagonismo juvenil), assegurando excelência acadêmica e inclusão social", explica o educador de 68 anos. Na Escola da Ponte, os alunos são incentivados a trabalhar em projetos, têm autonomia e decidem os conteúdos que vão estudar por eles mesmos. Já os professores não estão ligados intrinsecamente a uma única turma - transitando com emancipação. A liberdade assusta, mas a escola permanece dando lições para o mundo. Ao O POVO, José Pacheco falou sobre formação de leitores, capacitação dos corpos de professores e a urgência de ouvir (e entender) os educadores brasileiros.
O POVO - O modelo baseado em classes, apostilas, paredes e grades prejudica a aprendizagem?
José Pacheco - Não só prejudica como impede. Pressupõe que se ensine em sala de aula. E a aula pouco, ou mesmo nada ensina. Pouco, ou mesmo nada se aprende em sala de aula. A aprendizagem é antropofágica. Não se aprende o que o outro diz, apreendemos o outro. Um professor não ensina aquilo que diz, ele transmite aquilo que é. Poderá acontecer aprendizagem em sala de aula, se forem criados vínculos e esses vínculos não são apenas afetivos, também são do domínio da emoção, da ética, da estética... sem apostilas ou grades.
O POVO - Por qual razão nós sempre buscamos tantas receitas para aplicar no sistema de ensino?
José Pacheco - Talvez porque o Brasil padeça da síndrome do vira-lata e vá procurar lá fora o que tem cá dentro. Há muitas Finlândias dentro do Brasil...
O POVO - Como a literatura pode se configurar em ferramenta para ampliar os olhares e os horizontes de alunos?
José Pacheco - A literatura é fundamental. Mas será necessário criar leitores. E a alfabetização que se faz na maioria das escolas não gera amor à leitura. Não faltam metodologias, falta substituir um velho e obsoleto modelo educacional. Cada ser humano aprende a ler numa diversidade de metodologias. Há métodos de base silábica, os analítico-sintéticos, os globais de palavras, contos, ou de frases, há abordagens fonomímicas. Mas o método fônico continua sendo quase hegemônico. Num obsoleto modo de alfabetizar, o docente estabelece o "ritmo da aula" e, ao cabo de alguns meses, sugere que os alunos que não acompanhavam o "ritmo da aula", recebam aulas de "recuperação". O alfabetizador ignora os estilos de inteligência de cada aluno e despreza o repertório linguístico de cada criança. São assim as aulas "fônicas". Professor sozinho, na sua sala de aula, no frontal anônimo de aula igual para todos, ignorando que cada aluno apela a diferentes estilos de inteligência e que tem ritmo de aprendizagem próprio, que difere dos restantes. E o analfabetismo prospera.
O POVO - O senhor sempre foi um grande crítico da forma como o Brasil configura seu projeto educacional. Nós esquecemos dos ensinamentos de educadores brasileiros como Paulo Freire e Darcy Ribeiro?
José Pacheco - Quando me perguntam pelas minhas referências de inovação, respondo: Pedro Demo, Paulo Freire, Maria Nilde, Nise da Silveira, Agostinho da Silva, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Lauro de Oliveira Lima… E, quando ouço dizer que Paulo Freire deveria sair das escolas, eu pergunto: como poderá ele sair, se nelas nunca entrou? Quando Freire estiver efetivamente presente nas práticas dos educadores brasileiros, o Brasil compreenderá que tem os melhores projetos, os projetos mais inovadores, os melhores educadores do mundo.
O POVO - Provas, resultados e métodos avaliativos ainda assustam os alunos. Como fugir dessas amarras?
José Pacheco - Quase não existe avaliação nas escolas. Há exames, que quase nada avaliam. O teste é o instrumento de avaliação mais falível que existe. Conceber itens de teste, garantir fidelidade e tudo mais é um exercício extremamente rigoroso, assim como assegurar que as condições são as mesmas para todos quando se aplica o teste. E corrigir o teste também introduz uma subjetividade enorme. Além disso, esses instrumentos de avaliação apenas "provam" a capacidade de acumulação cognitiva, de armazenamento de informação em memória de curto prazo, para debitar no exame e esquecer. A avaliação praticada na Ponte e no Projeto Âncora é aquela que a lei estabelece: avaliação formativa, contínua e sistemática. Os registros de avaliação e as evidências de aprendizagem constantes dos portfólios de avaliação dizem-nos o que as crianças aprenderam, quer no domínio cognitivo, quer no domínio atitudinal. Qualquer pessoa minimamente conhecedora dos ainda ocultos saberes das ciências da educação sabe que a solução não passa por haver mais exames. Aliás, a Finlândia extinguiu, quase por completo, os exames...
O POVO - Nós cobramos demais dos nossos professores?
José Pacheco - Não cobramos demasiado dos professores. Deveremos, isso sim, cobrar dos seus formadores. A formação de professores continua imersa em equívocos, continuamos cativos de um modelo de formação cartesiano, que impede um re-ligare essencial. Sabemos que um formador não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é, veicula competências de que está investido. Mas, ainda há quem ignore a existência do princípio do isomorfismo na formação, quem creia que a teoria precede a prática, quem considere o formando como objeto de formação, quando deveria ser tomado como sujeito em autotransformação, no contexto de uma equipe, com um projeto. Prevalecem práticas carentes de comunicação dialógica, culturas de formação individualistas, de competitividade negativa, de que está ausente o trabalho em equipe. Venho repetindo que a profissão de professor não é um ato solitário, mas solidário. Que o trabalho em equipe pressupõe um permanente convívio, estabilidade e lealdade a valores e princípios de um projeto.
O POVO - Quais os itens que tornaram a Escola da Ponte tão inovadora e fizeram a instituição se destacar mundialmente?
José Pacheco - Na Escola da Ponte, a decisão de mudar foi de origem ética. Encontrei jovens analfabetos, que tinham sido ensinados do modo que eu antes ensinava. Se eu continuasse a trabalhar do modo como, até então, havia trabalhado, aqueles jovens continuariam sem saber ler. Tomei consciência de que, dando aula, eu não conseguiria ensiná-los. Na época, nem da existência de um Piaget tínhamos conhecimento. Agimos por intuição pedagógica, movidos pelo amor que tínhamos (como qualquer professor tem) pelos alunos. É preciso experimentar um novo modo de organização, em equipes de pessoas autônomas e responsáveis, todas cuidando de si mesmas e de todo o resto, numa escola realmente "pública". Não negando o potencial da razão e da reflexão, juntar-lhe as emoções, os sentimentos, as intuições e as experiências de vida. E uma escuta que, para além do seu significado metodológico, terá de ser humanamente significativa e de assentar numa deontologia de troca "ganha-ganha". Que se perceba que toda a prática tem teoria subjacente, que não há prática sem teoria. E que a fundamentação teórica do ato de educar seja multirreferencial, numa práxis coerente com necessidades educativas locais, escapando a modas e fundamentalismos pedagógicos. Que a aprendizagem não está centrada no professor, nem no aluno, mas na relação. E que da qualidade da relação depende uma boa qualidade educacional. As escolas poderão desenvolver um currículo mais adequado às novas competências e exigências do século XXI. A velha escola há de parir uma nova educação. Mas as dores do parto serão intensas, enquanto as "naturalizações", as "certezas", as crenças ministeriais, a tecnocracia e a burocracia continuarem a prevalecer em domínios onde deveria prevalecer a pedagogia. Creio que ainda não é consensual, mas é incontornável. A Ponte provou a possibilidade de uma escola onde todos aprendam e sejam felizes. Operou uma ruptura total com o velho e obsoleto modelo educacional, que ainda prospera na maioria das escolas. A Ponte provou ser possível garantir a todos o direito à educação. E a uma boa educação.
O POVO - Como garantir que as crianças ficarão interessadas em aulas e conteúdos quando elas não têm acesso a serviços básicos como saneamento, saúde e moradia?
José Pacheco - É evidente que não se aprende com o estômago vazio, nem se poderá exigir estudo a crianças doentes e preocupadas com a precariedade da sua habitação. Mas poder-se-á criar condições de melhoria dos serviços básicos, se a escola se transformar numa comunidade de aprendizagem, se concebermos uma nova construção social de aprendizagem, que contribua para a sustentabilidade da comunidade que a escola serve.
Lançamento do livro Diálogos Educacionais: Carta de Princípios da Rede Nacional de Educadores Conspiradores Românticos
Com a palestra do educador português José Pacheco, inspirador da obra
Quando: domingo, 18 de agosto
Horário: 19 horas
Onde: Espaço do Professor
Destaques de sábado na Bienal do Livro
14h às 15h30min - Mesa Narrativas sobre ancestralidade negra cearense
Com Lúcia Simão - Movimento Negro, Aurila Maria - Movimento Quilombola e Leno Farias - Povo de Matriz Africana
Mediação: Sandra Haydée Petit
Onde: Arena Multicultural Juvenal Galeno
Literatura e infância
10h às 11 horas - Bate-papo Meus autores e livros preferidos para a infância
Com Kelsen Bravos
Mediação: Francélio Figueiredo
Onde: Sala As Flores e os Passarinhos - Mezanino 1
18 horas - Bate-papo Literatura infantojuvenil, encantamento e imagens: quais são os segredos?
Com Alexandre de Castro Gomes (RJ) e Cris Alhadeff (RJ)
Para educadores e interessados
Onde: Sala O Menino Perguntador - Mezanino 1
20 horas - Mesa Os desertos povoados- Marco Lucchesi (RJ) e Mariana Ianelli (SP)
Mediação: Majela Colares (PE)
Onde: Terreiro Em Sonho - Térreo
Festival de Ilustração do CE
19 horas - Bate-papo com Geraldo Jesuíno
Mediação: Eduardo Azevedo e Rafael Limaverde
Onde: Arena Multicultural Juvenal Galeno