Amara Moira tem o poder da palavra intrínseco em si mesma. É a primeira pessoa trans a conseguir o título de doutoramento na Universidade de Campinas, a Unicamp, uma das instituições de ensino superior mais renomadas e tradicionais do País, usando o nome social. Ela é presença confirmada na Bienal Internacional do Livro do Ceará - programação que segue até 25 de agosto no Centro de Eventos. Amara passou os últimos anos de vida acadêmica se dividindo entre a pesquisa literária - defendeu tese sobre a indeterminação de sentido na obra Ulysses de James Joyce - e a militância em livros, palestras e outras ações. Como mulher trans, aprendeu logo cedo que o mundo não foi feito para corpos que estão fora de um padrão estabelecido. Aprendeu também que a universidade pode ser um lugar hostil para quem não consegue atender o ritmo de produção exigido pela academia. Sobre esses e outros assuntos, Amara Moira discorre na entrevista a seguir.
O POVO - Você tem uma trajetória muito relevante na academia, tendo concluído os cursos de mestrado e de doutorado. O ambiente acadêmico ainda carrega preconceitos?
Amara Moira - Faz cinco anos que eu pedi para a primeira pessoa me chamar de Amara e considero isso um marco. O momento que comecei a existir como Amara para outra pessoa e não apenas para mim. Estava no começo do doutorado. Senti muitas diferenças a partir dali. Uma questão central é que como eu estava ali existindo como homem da forma mais padrão possível, a sociedade tinha sido feita para pessoas como eu. Era muito cômodo existir daquela maneira. Quando eu me deparo com um mundo que é mais perigoso, mais hostil, mais violento e o tempo todo te deslegitima, eu comecei a precisar ter uma atuação mais firme no campo do engajamento político e comprometimento com causas sociais. Para lutar por um mundo onde corpos como o meu pudessem ser acolhidos e respeitados. Coisa que eu não conseguia imaginar antes de começar a transição. Eu dividi a minha concentração acadêmica em duas partes. O momento de estudar e escrever, mas também o momento de me engajar em causas e questões que para a produtividade acadêmica são perda de tempo. Olha que engraçado: dentro dessa atuação nos movimentos sociais, eu produzi muitos artigos sobre gênero, eu publiquei livros e capítulos de livros. O E Se eu fosse puta está sendo estudado em inúmeros lugares. As obras que eu publiquei se tornaram interessantes para manter girando a maquinária acadêmica. Mas como essas obras não tinham foco em literatura e estudos literários, é como se para o meu instituto, eu fosse uma pessoa pouco produtiva. Eu recebi cobrança e preconceito nesse sentido.
O POVO - Mas você acredita que a universidade aceitou você enquanto pessoa trans?
Amara Moira - É como se a universidade tivesse me aceitado trans, mas não me aceitou militante comprometida com outras causas. E nisso é como se a universidade estivesse dizendo: "aqui é lugar para homens o mais padrão possível". Homens que não precisam se engajar em outras coisas, pois não tem outras coisas para lutar por. Eu vejo minhas amigas. Tinha amigas mães solo. Cuidavam das crianças só elas. E a universidade é um espaço hostil para essa figura também. E essa mãe é considerada menos produtiva do que o homem. Aquele espaço é feito para pessoas que não têm outras responsabilidades e outras lutas sociais. Eu descobri que meu corpo, a partir daquele momento, passou a ser visado e alvo de discriminação. Eu precisava lutar por um mundo em que eu coubesse. Antes eu não precisava.
O POVO - O que a palavra trans, para você que tem estudos de linguística, está representando atualmente para os brasileiros?
Amara Moira - A gente tem conseguido muitos espaços de visibilidade. Quando comecei minha transição, nunca imaginava que a gente poderia estar presente em tantos espaços e em número tão grande nas universidades. Crescendo, publicando, questionando o conhecimento que é produzido ali e transformando. Na mídia como pensadoras, referências como artistas e profissionais. Até como referências esportivas! Vejo a nossa presença em mais lugares. E só o fato de chegarmos lá já causa tumulto. Sempre há mil matérias quando surge uma figura trans no espaço onde supostamente não deveria existir ou nunca havia existido antes. Tem um exotismo sobre quem é essa figura. A gente está presente em muitos espaços. Mas uma parcela da população está muito apavorada diante da nossa presença em tantos espaços. Quando a gente está presente em muitos lugares, isso representa um ganho, mas ao mesmo tempo isso é entendido como uma ameaça para parte da população. E faz com que essa parcela que se sente ameaçada venha para cima de nós e nos coloque em posição de perigo. É visibilidade e exposição, que tem as conotações adequadas para a palavra trans. Estamos em visibilidade, mas estamos expostas e vulneráveis.
O POVO - E como a literatura pode ajudar a tirar esses olhares em relação a população trans?
Amara Moira - Onde os nossos corpos não chegam, as nossas palavras talvez possam chegar. E pelo contato com as nossas palavras, as pessoas podem talvez ir abrindo suas mentes e se permitindo o contato com esses corpos que são tão diferentes e tão iguais. Somos produtos da mesma sociedade que criou homens e mulheres não trans. A literatura pode ser perversa por reforçar padrões e discursos discriminatórios. A gente tem uma sequência longa de autores que fizeram da literatura, sabendo ou não sabendo desse posicionamento, um discurso discriminatório. Às vezes, a pessoa nem percebe que está reproduzindo esse discurso. A literatura pode ser, sim, um instrumento de manutenção do poder, da realidade do jeito que ela é. Mas eu acredito na literatura como espaço de perturbação da ordem, transformação das realidades.
O POVO - Isso passa também pela escritura do teu livro, o Se eu fosse puta?
Amara Moira - Muita gente me escreve dizendo que a leitura do Se eu fosse puta fez com que elas concebessem o que é uma travesti e uma prostituta de outra maneira. São pessoas que aprenderam a ver esses corpos habitando as noites e as esquinas, aprenderam a temer esses corpos e a temer esses seres. E não conseguiram criar outra relação que não seja de temor. Quero que as pessoas aprendam a nos ver de outra maneira que não seja a partir do medo.
O POVO - E sobre estar com os leitores do Ceará?
Amara Moira - Eu acompanho bastante os bastidores da minha repercussão nas redes sociais. Estou presente no Instagram e das cinco cidades mais fortes com seguidores, a quinta é justamente Fortaleza. É um espaço onde eu tenho ido cada vez mais. A primeira vez faz dois anos. É uma terra de grandes escritores. E eu, como professora de literatura, aprendi a amar e admirar esses escritores. E sair da minha zona de conforto e poder dialogar com leitores de outros lugares é sempre incrível.
O POVO - O que você tem aprendido na vivência como professora de literatura?
Amara Moira - Eu sou professora na maior instituição de ensino à distância do País. Dou aula dentro de um estúdio para o Brasil inteiro. Foi muito interessante, pois a instituição quis uma professora trans de literatura. Tem dias que dou aula para quatro mil alunos ao vivo. E por mais que seja muita gente, e a gente esteja em um momento conservador, até hoje a maior parte do feedback é falando que a aula foi importantíssima por muitos critérios. E um deles é a representatividade. Alunos LGBTs me verem nessa posição diz para eles que é possível sonhar com um mundo que os acolha. Mas não é apenas por representatividade. Eu tenho um feedback positivo de alunos que não são LGBTs. Aprendendo que eles podem aprender conosco. Somos poucos os professores e as professoras trans. E, geralmente, estão no ensino público, onde conseguimos passar pro concurso. As escolas privadas têm aversão a ideia de ter uma professora trans, pois vão ter que se explicar para os pais que veem a nossa mera presença como ameaça. Eu sinto que tem sido importante para mim estar na sala de aula.
O POVO - Você consegue separar a figura da militante e a figura da professora?
Amara Moira - Eu tive uma conversa com o meu coordenador no cursinho e ele me perguntou se me vejo fazendo militância ou sendo professora. Eu falei que não conseguia diferenciar as coisas. A minha presença é política, dá mensagem para a sociedade e quem me assiste vai encontrar uma boa professora de literatura. Eu não quero escolher entre as duas opções. E também pela forma como vou abordar a literatura. Eu tendo a dar uma aula que é cobrando e provocando os alunos a lerem as obras de literatura de uma perspectiva que dialoga com o mundo. Se estamos discutindo o papel da mulher na sociedade, vamos nos perguntar o que a mulher está fazendo nessas obras e o que estão fazendo com ela. Eu direciono os olhares para essas perspectivas. Isso é importante como forma de provocar o questionamento para que eles já vão se habituando a desenvolver outro olhar. E desnaturalizar violências que aprenderam a ver como naturais.
Literatura como visibilidade trans
Com Amara Moira (SP) e Ayla Nobre (CE)
Quando: sexta-feira, 23, às 19 horas
Onde: Sala A Rua e o Mundo - Mezanino 2 (Centro de Eventos)
Entrada gratuita
Destaques de hoje da programação
16 horas
Bate-papo Literatura, HQ, cinema e jogos
Rodrigo Passolargo, Miguel Felício, Ítalo Furtado e Kami Girão
Onde: Sala O Inventário do Cotidiano - Mezanino 2
10 horas e 15 horas
Sarau Bota o Teu
Com poetas e integrantes do sarau
Onde: Sala A Rua e o Mundo - Mezanino 2
9 horas e 14 horas
Sarau Livre Curió
Com poetas e integrantes do sarau
Onde: Sala A Rua e o Mundo - Mezanino 2
18 horas
Lançamento de 20 Filmes na Cena Social
Com Jânio Nunes Vidal, Rozimar Rocha, Júlia Kilme.
Onde: Praça de Convivência - Arena Iracema, no Térreo