Motivos não faltam para Karim Aïnouz celebrar. A Vida Invisível, seu mais recente filme, venceu a mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes, feito inédito para o cinema nacional, e acaba de ser escolhido o representante do Brasil na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2020.
O longa será exibido pela primeira vez no País nesta sexta, 30, em Fortaleza, terra natal do cineasta, na abertura do 29º Cine Ceará, festival em que será homenageado. No dia 19 de setembro, o filme estreia exclusivamente nos cinemas nordestinos. As outras regiões terão que esperar até 31 de outubro, quando ele entra em circuito nacional.
Nesta entrevista exclusiva ao O POVO, por telefone, Karim Aïnouz assume o nervosismo para a primeira exibição de A Vida Invisível no Brasil, defende que o melodrama seja um libelo antipratiarcado, e fala da possibilidade de uma carreira internacional e dos próximos filmes que pretende fazer. "Mais importante que fazer um filme americano ou hollywoodiano é fazer filmes que façam a diferença", garante.
O POVO - Como está a expectativa para exibir pela primeira vez A Vida Invisível no Brasil?
Karim Aïnouz - Eu estou super nervoso. Não importa o filme, eu acho que a primeira vez é sempre a primeira vez. A gente não aprende direito. É igual a se apaixonar, você nunca sabe o que vai acontecer... Mas ao mesmo tempo estou muito animado, estou muito feliz de passar o filme pela primeira vez em Fortaleza. Ainda mais no São Luiz, que é o primeiro cinema que eu fui na vida. Eu acho que vai ser um momento muito incrível. E acho que é um filme que vai falar com muita gente. Sei lá, diferente dos outros, eu acho que é um filme que tem um apelo popular grande. Estou bem curioso de saber como ele vai bater no Brasil. Na verdade, a gente só passou em alguns festivais, e no Brasil vai ser a primeira vez. Estou curioso em saber se as pessoas em Fortaleza vão reconhecer os personagens... Tem um monte de coisa autobiográfica no filme também, né? Eu estou nervoso, na verdade. Estou bem nervoso. A gente lança agora em Fortaleza e no resto do Brasil em outubro. Mas essa exibição em Fortaleza é muito especial para mim.
OP - Você diz que a primeira exibição do filme em Cannes foi muito especial. O que de diferente teve essa exibição?
Karim - Cara, ter um filme em um festival como Cannes já é uma vitória, você já passa por uma mega seleção. Mas teve uma coisa da exibição do filme no Festival, que foi muito emocionante. Sabe quando você sente uma eletricidade do público? Como eu nunca senti antes em nenhum filme que eu já tenha feito. E isso foi muito bonito. E quando você pergunta o que estou esperando acontecer em Fortaleza, eu estou achando que vai ser muito parecido. O São Luiz é um cinema que tem uma história muito importante, que tem uma história muito grande. O que aconteceu foi que o cinema pegou fogo em Cannes. Pegou fogo e encheu de lágrimas! Foram essas duas coisas. O filme passava e eu ficava ouvindo as pessoas assoarem o nariz, e tinha realmente o termômetro que o filme estava chegando às pessoas. Eu fico muito sonhando que a exibição no São Luiz seja muito parecida com a que teve na França. E para mim vai ser uma loucura por conta dessa relação pessoal com o São Luiz!
OP - Você define o filme como "melodrama tropical". O que vem a ser esse gênero específico?
Karim - Na verdade, o filme é um melodrama no sentido clássico, é uma história de personagens que estão afogados pelo mundo... Melodrama é um gênero que acho que cruza fronteiras, que tem no mundo inteiro. Mas quando eu estava fazendo o filme era muito importante que o filme tivesse o DNA brasileiro, sabe? Que ele tivesse realmente elementos que o identificassem. Sei lá, você tem melodramas no Egito, melodramas no México, é um gênero que você tem em vários países do mundo. E aí, quando eu pensei no nosso cinema especificamente, era muito importante para mim que o filme tivesse algumas referências que fossem muito brasileiras. Então, o filme se passa no Rio (de Janeiro). Essa coisa do tropical foi uma coisa que veio depois, esse nome, mas para mim tem muito a ver com um filme que se passa num lugar quente... O Rio de Janeiro é uma cidade que fica no meio de uma floresta, então tem uma coisa muito importante da natureza. Os personagens moram numa casa que fica no meio de Santa Tereza. Tem uma coisa da relação com a natureza, que eu acho que é muito brasileira, especificamente no Rio.
OP - O Rodrigo Teixeira (produtor executivo de A Vida Invisível) anunciou que no próximo ano você rodará seu primeiro filme nos EUA. Há duas semanas, você assinou contrato com a agência norte-americana Creative Arts (CAA), a mesma que cuida da carreira de Steven Spielberg e Meryl Streep, para citar só duas das grandes estrelas. Isso é uma sinalização que você está a caminho de Hollywood?
Karim - Menino, eu não sei não (risos). É engraçado, realmente não sei. Na verdade, eu estou num momento da vida, que é assim... Eu estou com 50 anos e estou super aberto para novas aventuras, mas não necessariamente com o sonho de fazer um filme nos EUA. Teve uma coisa bonita no prêmio em Cannes, o filme ganhou visibilidade no mundo inteiro. Eu nunca imaginei que um prêmio como esse pudesse jogar tanta luz para um filme. É claro que hoje existem possibilidades que não houve antes para mim. Mas eu não estou necessariamente querendo fazer um filme americano, em Hollywood. Quando eu digo que estou com 50 anos é porque eu acho que mais importante que fazer um filme americano ou hollywoodiano é fazer filmes que façam a diferença, sabe? Mas é claro que existe uma certa sedução de fazer um filme nos EUA por conta do elenco, mais do que qualquer coisa. Existe ali um pool de elenco que é muito fascinante, que atrai um público grande. Mas eu acho que mais que estou num momento de fazer escolhas muito... Teve uma coisa muita específica desse filme. Uma amiga minha me escreveu, ela viu o filme quando ele passou em Paris, logo depois de Cannes. E ela disse que parecia que o filme estava enfeitiçado. Eu acho que tem um feitiço mesmo esse filme.
OP - A Vida Invísivel parece muito próximo do universo de Seams, seu primeiro filme. Eles estabelecem uma ponte?
Karim - Como você me conhece há muito tempo, imaginei que fosse perceber isso. Porque eles são muito próximos. Completamente próximos! E isso foi muito bonito. O Seams é um retrato, em forma de documentário, da minha avó. E esse filme é um retrato em forma de ficção daquele mesmo universo, entendeu? Eu acho que é por isso que o filme toca tanto as pessoas. Sabe quando você coloca seu coração na mesa ali? Quando você está fazendo um filme, às vezes você se defende, você se esconde, mas nesse tinha uma coisa... Eu acho que tem muito a ver com a perda da minha mãe. Quando a minha mãe faleceu, tinha uma coisa que era a vida dela, que eu achava que tinha que ser contada em voz alta. Eu acho que foi uma vida da qual o mundo sabia pouco e foi uma experiência bastante dura, mas bastante forte. De ser uma mulher, de criar um filho sozinha, num lugar como o Ceará, que é super conservador. Talvez seja essa a magia desse filme, sabe? Quando, de fato, o realizador se coloca de corpo e alma numa história, isso contamina a história e o público vê isso. Então, estou mais interessado nisso que necessariamente fazer filme em Hollywood. É claro que é sempre muito tentador fazer um filme que viaje o mundo... Outra coisa engraçada que aconteceu em Cannes, a gente vendeu o mundo para a China. E aí eu sentei com o distribuidor chinês do filme, a gente tomou um café durante o festival, e ele falou que queria fazer um remake deste filme. "Como assim um remake do filme na China? O que é que você quer dizer com isso, cara?". E ele falou que era uma história que, apesar de ser muito local, também era muito universal. Que a experiência das mulheres na China era muito semelhante à história colocada no Vida Invisível. É isso que me interessa mais na vida.
OP - Como está o projeto do filme Argelino por acaso, documentário sobre seu pai e sua mãe?
Karim - Eu estou fazendo esse documentário agora. É um documentário que é muito sobre a história de amor dos meus pais, e como essa história não deu certo. Eu fui para a Argélia (país natal do pai de Karim) pela primeira vez este ano. A gente foi em fevereiro, e filmei um pouco essa viagem. Peguei um barco para ir para lá e fui até o lugar em que meu pai nasceu. É até engraçado você perguntar isso. É um filme que estou montando agora, eu acho que ele tem que ser filmado ainda. Ele é mais um ensaio, ele é muito mais próximo do Seams, por exemplo, que de uma ficção. É realmente um filme autobiográfico, que fala exatamente da história de amor de um casal na década de 1960, que se encontrou por acaso nos EUA, de lugares do mundo completamente diferentes, né? Meu pai vem da Argélia, minha mãe de Fortaleza. E como esse encontro se deu num momento histórico do mundo, que é muito diferente de hoje. Onde as pessoas se arriscavam muito mais, onde as pessoas sonhavam muito mais, eu acho. Então, esse filme, apesar de ser uma história muito pessoal minha, como Seams era também, mas falava de um tema que eu acho que era relevante politicamente que é identidade de gênero, e esse filme da Argélia é muito sobre a revolução. Como que o encontro dos meus pais foi de fato um encontro revolucionário e improvável. E como que esse encontro revolucionário e improvável se deu num momento em que o mundo estava vivendo uma grande revolução. Uma revolução política, uma revolução de gênero, uma revolução de conquistas de liberdade civis.
OP - Na sua cinematografia tem uma coisa muito especial, que é o fato de todos os seus longas terem estreado em alguns dos principais festivais internacionais. Desde o primeiro, Madame Satã, que estreou na mostra Un Certain Regard, em Cannes, até A vida invisível, que não só estreou como foi premiado na mesma mostra do festival francês, que também selecionou Abismo Prateado para a Quinzena dos Realizadores. Além destes três, seus outros filmes estrearam em Berlim (Praia do Futuro e THF: Aeroporto Central) e Veneza (Viajo porque preciso... e O Céu de Suely). Agora, você é o representante brasileiro na corrida por uma indicação ao Oscar este ano. É o prêmio que falta?
Karim - Que nada, rapaz! Você está louco!? (gargalhadas) Falta muito prêmio ainda! Não dá para acreditar muito nisso. É claro que é ótimo! Quando a gente recebeu o prêmio em Cannes, de verdade, eu não esperava. Eu já estava tão feliz que a gente estivesse no festival... É claro que é muito bom esse tipo de reconhecimento. É claro que o Oscar, a Palma de Ouro, o Leão de Ouro e tal são reconhecimentos. Mas eu acho que a gente não pode acreditar muito nisso não. Para mim seria legal levar o careca para casa (risos). Seria incrível! Aquele careca dourado e tal. Mas ao mesmo tempo, acho que quando você fala que os filmes estiveram em todos os festivais, é verdade, mas é mais importante pensar que eles têm que ser filmes potentes. Mais do que só mirar em festival. Mas, especificamente este ano, eu acho que o Oscar tem uma significação especial. Este é um momento muito específico.
OP - Por causa do ataque à Ancine e às políticas audiovisuais?
Karim - Sim. O cinema brasileiro tem sido tão questionado! As formas de financiamento, a maneira como os filmes são produzidos e tal, que eu acho que é muito importante a gente ter uma indicação brasileira entre os quatro que disputarão o Oscar, por uma questão de dar visibilidade ao nosso cinema, que passar por uma certa crise. Nesse sentido, é um sonho que eu nunca tinha sonhado direito, mas que hoje eu sonho. É claro que não estou fazendo nenhuma falsa humildade, é claro que seria super legal. Mas ao mesmo tempo, eu acho que um Oscar nesse ano seria de uma potência e de uma importância política muito grande. Porque é a confirmação de uma política audiovisual que tem gerado tanto sucesso nos últimos dez anos, e que tem sido colocada em xeque. Eu acho que é quase se o Oscar tivesse duas forças. Ele tem a força do Oscar em si, que é um reconhecimento internacional, mas também é um reconhecimento de uma história de políticas audiovisuais das quais o filme faz parte.