Logo O POVO+
Fontes vazias em Assunto de Família
Vida & Arte

Fontes vazias em Assunto de Família

| STREAMING | "Assunto de Família" chega ao catálogo da Netflix com a pompa de ter conquistado a Palma de Ouro de 2018 em Cannes e de ter sido indicado ao Oscar 2019 na categoria de Filme Estrangeiro.
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Longa japonês Assunto de Família consta no catálogo da Netflix (Foto: Fotos divulgação)
Foto: Fotos divulgação Longa japonês Assunto de Família consta no catálogo da Netflix

Um homem aparentando uma velhice acentuada pelo cansaço dos dias chega em casa. O ambiente é desorganizado e completamente entupido de objetos a ponto dos humanos que vivem ali serem facilmente confundidos com o cenário. A família é simples, não aparenta ter uma renda elevada, mas antes já havia sido mostrado que todo aquele acúmulo é resultado de pequenos furtos em supermercados e lojas da região.

Osamu Shibata, o patriarca, trabalha nessas fábricas que têm aos montes pelo Japão e volta toda noite para casa. Em um desses regressos, junto com sua esposa Nobuyo Shibata, encontram uma garotinha cujas lágrimas se confundem com a água da chuva. É de noite e os pais não estão por perto. Prontamente levam a menina para passar a noite na caótica residência. O que deveria ser uma noite, se tornam duas, três e por aí vai. A menina, mais para frente, se mostra capaz de roubar tão bem quanto o patriarca e quanto seu filho, o jovem Shota. Ela passa a adorar viver naquela família e eles passam a adorar a presença da pequena Yuri Hojo cuja origem é de agressões familiares e desequilíbrio emocional dos pais.

O filme "Assunto de Família" nos envolve em uma desordem mental tão densa quanto a desorganização da casa da família Shibata, que representa perfeitamente os paradoxos aos quais somos forçados a viver nessa história. Pelo lado de fora, em um plano repetido várias vezes pelo diretor Hirokazu Koreeda, vemos apenas uma casa simples, meio antiquada pros padrões atuais e cuja beleza está justamente nisso. A trama inicialmente nos mostra uma família de moral duvidosa pelo lado de fora, mas as incontáveis camadas vão gerando outras opiniões sobre o clã. Como podem esses ladrões terem tanto carinho e apego por uma criança indefesa? Eles não são maus? Não são. Eles sobrevivem ao passo que parecem gostar de praticar aqueles pequenos furtos. O "para que" é bem fácil de saber, o "por que" está mais escondido.

A situação proposta piora. Somos convidados a refletir se é certo o que estão fazendo. Não falo de toda a complexidade de colocar uma criança no caminho dos furtos, não é isso. Perceba, ela mesma é resultado de um furto. Quando o paradeiro da família dela é descoberto e mesmo assim decidem escondê-la, tudo aquilo se torna também moralmente questionável, ainda que saibamos do passado nocivo para a menina.

Apenas olhando passivamente e não participando lá dentro da situação é fácil torcer pelo bem da pequena Yuri, embora esse bem venha acompanhado de todo esse cenário proposto. Então surge o senso comum: se não pode devolvê-la para os pais, a entregue ao Estado. Nesse momento a resposta do "por que eles roubam" fica evidente. Eles não confiam no Estado, eles não tem o Estado como um ente que irá conseguir dar uma vida legal para Yuri. Eles, a família Shibata, conseguirão. Não outros. E a menina, inocente pro bem e pro mal, parece atestar a favor disso.

O roteiro explora a vida de outros personagens a fim de expandir as motivações daquela família. A jovem, mas já adulta, Aki e a senhora Hatsue são abordadas pelo texto na medida certa a fim de que uma luz seja jogada em outras obscuridades da família. A constituição daquele time é bem mais heterogênea do que inicialmente aparenta e nada é entregue de bandeja pelo roteiro e direção do excelente Hirokazu Koreeda (veja "Depois da Tempestade" e "Pais e Filhos" a fim de entender melhor onde repousa a crítica mais forte desse criador).

A melancolia, as dores, os paradoxos, as alegrias, as dúvidas, os pesares... somos conduzidos a tudo isso até que, ao final, somos estraçalhados em um emaranhado de decisões difíceis de serem concebidas. É fácil querer entender o motivo de ficar tanto tempo com aquela família, de sermos apresentados ao seu pior e ao seu melhor. Difícil é diante de final tão forte conseguir manter um olhar tão vazio quanto as fontes do jardim daquela casa outrora cheias d'água corrente cujo som gerava paz e tranquilidade, o extremo oposto do que o filme nos entrega.

"Assunto de Família" chegou ao catálogo da Netflix com a pompa de ter conquistado a Palma de Ouro de 2018 em Cannes e de ter sido indicado ao Oscar 2019 na categoria de Filme Estrangeiro representando o Japão.

O que você achou desse conteúdo?