"Escrever é estar no extremo de si mesmo", é como João Cabral de Melo Neto definiu, certa vez, o ofício o qual se dedicou durante a maior parte de sua vida. E a escrita - essa “nudez, a mais nua que há” - é um dos caminhos em que o poeta de Recife se dá a conhecer por inteiro: o homem inquieto, de ideias fixas, engenheiro da palavra. Há duas décadas, o escritor partia, deixando uma literatura que tematizou o sertão, o fazer poético e a realidade cotidiana.
Quando faleceu, em outubro de 1999, o poeta estava cego. Há muito já havia trocado a paisagem do Recife pelo discreto apartamento no Rio de Janeiro, onde costumava se entreter ouvindo o noticiário do rádio e ditar meia dúzia de versos para que sua esposa, Marly, os transcrevesse. O corpo cansado já desafiava a paixão pela poesia. Súbito, como o derradeiro verso que silencia o poema, expirou aos 79 anos - mais da metade deles dividida entre a literatura e a diplomacia.
Com uma produção literária marcada pelo fascínio em torno da visualidade, João Cabral é um dos nomes centrais da poesia brasileira do último século. Sua primeira obra foi publicada em 1942, intitulada “Pedra do Sono”. A ela se seguiram títulos como “O cão sem plumas” (1950), e A educação pela pedra (1966). “João Cabral de Melo Neto dizia que um poeta, para escrever, não poderia ignorar a dimensão humana que as palavras guardam. Lendo o que ele escreveu, percebo que essa foi uma de suas motivações constantes”, analisa Rafaela de Abreu, pesquisadora que publicou o livro “Um vislumbre a caminho: a humana poesia de João Cabral” em maio deste ano.
Após os 27 anos, o ofício de diplomata o levou a percorrer diversas cidades do mundo - Barcelona, Londres, Sevilha, Marselha, Genebra, Berna, Assunção, Dacar, entre muitas outras. E a vida no além-mar, em diferentes aspectos, deixou profundas marcas em seu fazer poético. “É como se o distanciamento de seu lugar tivesse permitido que o poeta enxergasse, com uma riqueza maior de detalhes, as paisagens, situações, até mesmo os desafios enfrentados pelas pessoas do Nordeste brasileiro”, comenta Rafaela, pesquisadora de sua obra.
O amadurecimento poético do autor, primo do sociólogo Gilberto Freyre e do poeta Manuel Bandeira, resultou na sua obra-prima, que é, também, uma dos mais importantes obras poéticas da literatura brasileira. “Morte e vida Severina”, escrito entre 1954 e 1956, no qual narra a trajetória do retirante Severino no sertão pernambucano. “Ele falou de Pernambuco ao longo de toda a vida, mas não do mesmo modo. Assim, ele nunca deixou de voltar olhos para o lugar que era, também, o seu”, analisa Rafaela.
Entre os engenhos de Pernambuco e Andaluzia, em Recife ou na Espanha, Cabral contorna as principais marcas de seu ofício poético e, ao mesmo tempo, de sua biografia - esta, colhida nas lembranças do engenho, na secura e na essencialidade do sertão e na sobriedade da vida diplomática. “Cada palavra em um poema cabralino é um “cavalo solto” porque guarda, ao mesmo tempo, imagens bem delineadas e interrogações imensas. Elas reúnem uma representação e uma potencialidade, algo que desafia nossa inteligência”, conclui Rafaela.
11 de outubro de 1999
No dia 11 de outubro de 1999, o Vida&Arte publicou um especial sobre a morte do poeta, com o título “Poesia em silêncio”. Escrita pelo jornalista do O POVO Émerson Maranhão, a matéria trazia o depoimento de sua amiga pessoal, Rachel de Queiroz. Do Rio de Janeiro, ela disse ao Vida & Arte por telefone que estava inconformada com sua partida. "Morreu um dos grandes poetas que existiram no Brasil. João Cabral de Melo Neto, além do dom da poesia, tinha o dom da amizade. Neste momento não sabemos se choramos a perda do poeta ou do amigo", afirmou a escritora, que faleceu em 2003.
23 de outubro de 1999
Duas semanas após a morte do escritor, a cearense Rachel de Queiroz, então colunista do Vida & Arte, entregou aos leitores de sua crônica um relato em que demonstra o luto pela recente partida do amigo e, ao mesmo tempo, transborda no texto a saudade da amizade que mantiveram, na vida e na literatura. Na crônica, ela também recorda alguns traços marcantes da personalidade de João Cabral. Confira o trecho:
"João era um silencioso. Mas tinha uma maneira sutil de exprimir a irmandade com um toque de mão, com um sorriso calado. Ele estando junto era como se dissesse “Conte comigo, eu estou aqui. Já passei tudo que você está passando”. Isso que estávamos passando poderia ser a angústia de um momento, uma tristeza sem voz".