Querendo romper com o imaginário popular de que na favela só existe violência, moradores das periferias de Fortaleza passaram a se reunir em coletivos, motivados a produzir arte e cultura nas comunidades. Para Gleiciany Queiroz, ocupar-se com arte, cultura e livros, foge da "lógica" que se espera dos moradores da periferia. Ela participa do coletivo Sabiá, do bairro Sabiaguaba.
Numa noite, em volta de uma fogueira, conta ela, nasceu o coletivo Sabiá - o nome veio da forma afetuosa que chamam o bairro Sabiaguaba. O grupo ajudou na construção da biblioteca comunitária no bairro, fazendo campanha de arrecadação de livros. O coletivo também organiza o Cine Sabiá, com projeção de filmes para a comunidade.
Gleici, como prefere ser chamada, relata que eles "não têm a verba, mas tem o verbo", e que isso é o combustível para que continuem lutando pela valorização de espaços culturais na periferia. "Favela é coisa boa, eu cresci vendo coisa boa", afirma a articuladora comunitária.
Para Yuri Juatama, integrante do coletivo Perigrafia, a arte pode ser usada como instrumento de transformação social. O grupo é formado por fotógrafos da periferia da Capital. Os integrantes buscam, por meio da fotografia, mostrar outra narrativa sobre a favela, para além dos conceitos criados acerca da violência e pobreza. As ações do Perigrafia passam por fotozines, rodas de conversas e oficinas. "Vindo de onde venho, a arte só faz sentido se puder contribuir na mudança e transformação social", afirma.
"Teimosia e inquietude" foram as grandes motivações para que o coletivo DoisVetim surgisse na Barra do Ceará. O "vetim" foi uma apropriação feita pelo modo que os dois integrantes, Karine Araújo e Júnior Cavalcante, são conhecidos na favela por se vestirem de maneira particular (que maneira?). O grupo surgiu em 2018, e busca compartilhar conhecimentos em arte por meio de oficinas, como a de câmera fotográfica artesanal, e exposições com imagens feitas pela dupla.
Karine comenta existir "cobrança" para que as produções da periferia se encaixem em conceitos estabelecidos. Ela diz que o objetivo do coletivo é fazer arte a partir da realidade das periferias. Dando como exemplo a pichação "que não é considerada arte". Segundo sua avaliação, a "sociedade artística" sempre precisa de "um (homem) branco" para certificar o que é arte.
Todas as atividades desenvolvidas pelo DoisVetim, segundo Karine, acontecem graças ao "nós por nós", com as pessoas da comunidade unindo-se à eles para promoverem atividades culturais. "A gente se junta na tora, sem apoio do Estado", explica. Ela expõe que uma alternativa de financiamento seriam os editais do poder público. No entanto, ela diz que na periferia é difícil encontrar quem saiba preencher um edital. Segundo ela, falta "apoio e instrução" para vencer a burocracia dessa forma de financiamento.
Yuri comenta que vive de seu trabalho como fotógrafo, "mas em situação precária". Karine lembra que, quando fez o curso de fotografia no Porto Iracema, muitas vezes tinha que caminhar da Barra do Ceará até lá, quase oito quilômetros, por que não tinha dinheiro para pagar o ônibus. Gleici também reclama da falta de verba para fazer projetar filmes na comunidade periodicamente. No entanto, eles continuam produzindo e mudando vidas com a arte.
Segundo Rômulo Teixeira, doutorando em sociologia, a atividade desses coletivos periféricos é uma forma de "desmantelamento do racismo e preconceito institucionalizado que opera sobre a periferia". Enfatizando que é uma forma de "re-existência, e de reafirmação de ancestralidade a partir das expressões culturais, é uma forma de dizer 'eu existo'".
Dois Vetim, Perigrafia, Sabiá e tantos outros se unem em um grito de esperança e indignação. Inquietante e efervescente.