Cena única
No centro do palco, uma luz revela a atriz. Ela está sentada numa cadeira de madeira.
FERNANDA: Vamos falar de fracasso? Tenho um para compartilhar! Vocês sabiam que eu me debrucei numa adaptação para os palcos da biografia de Nelson Rodrigues e tive de lutar muito para tirar esse projeto do papel? Fiz como estou fazendo agora, saí lendo o roteiro por aí… Nem poder público, nem empresas... Ninguém comprou a ideia de primeira!
(Plateia cochicha)
FERNANDA: E é que estamos falando do grande Nelson, imagina? Logo ele, tão querido, tão genial... Ele que lá atrás atendeu ao meu pedido insistente e escreveu O Beijo no Asfalto. (Aproximando-se da plateia) Minha gente, eu passei oito meses ligando pra ele pedindo esse texto! Era uma jovem atrevida e queria uma obra do Nelson pra mudar minha carreira.
(Plateia ri)
FERNANDA: Nelson ficaria horrorizado com as dificuldades para ser artista hoje. Tudo tão sórdido... (Ri sozinha, baixinho) Entenderam, né? São sagazes... Podem chamar as senhoras de cruéis, sonhadoras demais, sem moral, boazinhas, mas nunca de burras!
(Luz revela as outras mulheres na plateia)
FERNANDA: Burra não somos! Pois bem, estamos aqui pra brindar os fracassos. Fora deste palco estão celebrando as minhas nove décadas, está todo mundo contabilizando os prêmios, com aquele papo de dama do teatro e tudo mais. Permito-me teimosa e quero falar do que não deu certo...
(Fernanda vira para uma das mulheres)
FERNANDA: Dora, você! Vamos falar de tropeços? Acho que você foi o mais bonito dos quase... (deboche)
DORA: Nada isso, Fernanda! Uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz, repara! Você foi a primeira entre todas! Estávamos lá representando Nathália, Laura, Glória, Eva, Betty... A nossa história com aquele moleque emocionou o mundo todo...
FERNANDA: Não negaremos, mas como eu já repeti: o prêmio não pode alterar em nada nossa vida... Somos trabalhadoras. Mas, sim, foi muito bonito... (Recuperando o vigor) Mas e, você, Bia Falcão, fracassou, hein? As maldades cometidas em Belíssima nem impressionam tanto neste País em 2019, não é? Crueldade ingênua?
BIA: Aparentemente não é só a pobreza que pega nessa nação de vocês. Esse desejo de tomar de assalto o que é do outro parece ser a principal missão dessa gente...
FERNANDA: Ainda competiremos com o real?
BIA: Não há mais páreo possível... Minhas empregadas estavam comentando esses dias que o presidente de vocês aparentemente não quer mais dar direito à cultura para ninguém. Não que eu ache isso importante, ainda mais essa cultura de massa...
FERNANDA: (Levantando-se) Não, Bia, não fracasse ainda mais com outro discurso elitista, minha querida. Olha, de quando eu era a menina Arlette até hoje, eu já fui de muitos públicos. Da radionovela na Zona Norte às minisséries refinadas, chegando a esses prêmios que tanto falam... Garanto! Nossa plateia é atenta, quer cultura! Seja de massa ou não. (Fechando os olhos) Não gosto de apatia, sem arte as coisas ficam silenciosas. Prefiro sempre essa gente louca,
sonhadora, estranha...
Fernanda pisca o olho para Dona Doida, mas é interrompida.
ZAZÁ: Ah, então, a senhora deveria
falar comigo...
FERNANDA: Você? Jamais. Quem realmente achou que uma filha de araque do Santos Dumont renderia uma novela das sete possível? (Gargalha) Nossa senhora!
NOSSA SENHORA: Eu?
FERNANDA: Você! Ah, você é genial! (Indo em direção e beijando a mão da personagem) Lá atrás já tinha tanto a nos ensinar. Ariano Suassuna esculpiu você tão bem! Nem sei como seria o julgamento do João Grilo hoje, meu Deus, ninguém quer interceder por ninguém...
NOSSA SENHORA: Sim, um horror! Todo mundo se abandonando. A esperteza deixou de ser a coragem do pobre para ser a ganância do rico. (Silêncio) Mas quem gosta de tristeza é o Diabo, Fernanda. Você está celebrando 90 anos de uma das vidas mais fantásticas que o público brasileiro pode acompanhar... Por que fala tanto em fracasso hoje?
FERNANDA: Ora, minhas senhoras, vocês são tão reais para mim que não quero encará-las apenas pelas conquistas. Olhar para cada uma através dos tropeços é olhar para mim por completo. (Senta-se) Claro que tenho muito orgulho de tudo que vivemos, mas não gosto quando tiram nossa humanidade. Não somos monstros sagrados
coisa nenhuma!
(Plateia cochichando, muitas fazem que "sim" com a cabeça)
FERNANDA: E, você, a mais novinha, por que esses olhos marejados?
EURÍDICE: Cheguei há pouco, mas já vivi tantas belezas ao seu lado, Fernanda. Até tropeçar contigo é bonito. Ecoam em mim suas palavras ditas no palco daquele cinema antigo e colorido em Fortaleza. Não consigo me ater aos desacertos, só penso que você está correta: o Brasil vai dar certo, ele vai vencer pela arte...
FERNANDA: (Titubeia) Vocês são mesmo bruxas! Vim brindar as falhas e estou aqui emocionada pensando em alegrias... (Cruzando as pernas) Mas, tudo certo, a melhor forma de comemorar é trazendo novas cadeiras para esta sala. Quero lotá-la ainda mais. Meus colegas de cena dizem que pareço estar sempre estreando, pois que seja! Vamos celebrar os 90 deixando as falhas de lado e olhando para o que vem. Vamos ser novatas de novo? (Personagens se agitam) Merda pra nós!
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As personagens: