A fúria que Lia Rodrigues coloca em cena é desejo de resistência. Juntando o título com a obra, em poucos minutos temos a confirmação: para sobreviver é preciso de um tanto de fúria, e de muito movimento.
Diferente dos últimos trabalhos da coreógrafa, Fúria é feito para o palco, o que abre novas possibilidades de tratamento de cena, e das dinâmicas oferecidas pelo espaço, que não inclui a plateia diretamente, no meio dos artistas.
Indiretamente, no entanto, ainda somos bastante afetados. Não só pelas cenas, mas por dedos que apontam e olhares que examinam e condenam. E acabamos fazendo parte do carrossel de imagens da obra.
Esse trabalho parte de uma coleta de 700 imagens pela companhia. Entre visões do cotidiano e imagens significativas, os artistas delinearam seu universo imediato. Agrupadas e organizadas, essas imagens ofereceram as sugestões para as cenas, para os movimentos e a progressão do trabalho.
No palco, os intérpretes se arrastam, se levantam, se carregam, se penduram, num encaminhamento furioso, contínuo, sem pausa. Surge uma obra de transformação. Homem, objeto, bicho, espaço: tudo em constante transição.
O efeito é o de um processo alquímico. E ele ajuda a explicar a violência que aparece em cena: as mudanças da matéria são processos energéticos, intensos e assustadores.
Aparecem poses, traços, objetos que transportam para as situações originais da pesquisa de imagens, mas o trabalho não é literal, e tudo chega fundido num caldeirão do momento de agora. Nada exatamente "é", tudo "está" — e também está prestes a mudar ou a deixar de ser.
Rodrigues cria formas que aparecem para se desfazer, como se assistíssemos, em uma hora, a um dia todo de desfiles de carnaval no sambódromo — reconhecemos algo, outro tanto passa despercebido entre os muitos lugares para olhar, e tudo segue num sentido sempre em frente, sempre contínuo, que não espera por ninguém.
Apertamos os olhos, e vemos que essa "pequena história" — a história do todo dia, vivenciada pela equipe da Lia Rodrigues Companhia de Danças, sediada dentro do complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro — é também reflexo direto da história da humanidade enfurecida.
No palco podemos sentir pitadas de faraós, cruzadas, navegadores, desbravadores, bandeirantes, imigrantes — e talvez fossem só as pessoas vivendo suas vidas. Brava gente. Sua missão também é quase que ritual: continuar. Encontrar, descobrir, construir. Mas também tomar, arrancar, privar, violar, violentar, subjugar. É o progresso, o irrefreável caminho em frente — às vezes massacrante.
Mesmo sem narrativa, o espetáculo tem História — com H maiúsculo, mesmo. E o que ele nos mostra é que compartilhamos não só da grande História, mas também dessa pequena história, que desponta das imagens e atravessa a plateia.
A obra começa calma. Vai crescendo, até tomar ritmo, e depois continua intensa em seu caminho. O social, o cotidiano vai se tornando ritual, que vira festivo, que escorrega pro frenesi, que se transforma em sexo, que vira êxtase, que abre espaço pra violência, que se torna de novo ritual, transformado em cotidiano. São ciclos. A vida às vezes enfurece. E precisamos dessa fúria para continuar.
Henrique Rochelle é crítico de dança, editor dos sites Da Quarta Parede e Criticatividade, Doutor em Artes da Cena (Unicamp), e Pós-Doutorando na ECA-USP