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Animação costura realidade e ficção na obra de Laerte
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

Animação costura realidade e ficção na obra de Laerte

Filme dirigido por Otto Guerra inspirado na obra da cartunista Laerte Coutinho, A Cidade dos Piratas mistura percalços das vidas dos dois
Tipo Notícia
A Cidade dos Piratas", de Otto Guerra, disputa Melhor Animação nos Prêmios Platino Xcaret (Foto: divulgação)
Foto: divulgação A Cidade dos Piratas", de Otto Guerra, disputa Melhor Animação nos Prêmios Platino Xcaret

Quem analisar um processo de um longa-metragem brasileiro lançado em 2019, mas que começou a ser pensado nos anos 1990, invariavelmente vai encontrar, no mínimo, muitos momentos de altos e também de baixos na produção. É o caso de A Cidade dos Piratas, novo filme do gaúcho Otto Guerra, baseado na vida e obra da cartunista Laerte Coutinho. Inicialmente um projeto que tinha a intenção de adaptar para o cinema os Piratas do Tietê, personagens de sucesso na década de 1990 criados por Laerte, o filme chega às salas do Brasil - ainda sem estreia confirmada para Fortaleza - misturando diferentes obras da cartunista e reflexões sobre as vidas dela e do cineasta. Os dois passaram, neste período, por mudanças bem significativas em suas vidas: Laerte se assumiu transgênero e Otto enfrentou um sério câncer.

"A vida atropelou a ficção, na real, e foi interessante", atesta Otto. O cineasta conta que conheceu Laerte ainda nos anos 1990, quando, junto dos também cartunistas Glauco e Angeli, criou o trio de personagens Los Três Amigos. A conexão entre todos veio através do gaúcho Adão Iturrusgarai, outro cartunista, que ao se mudar para São Paulo virou o "quarto amigo". "Comecei a participar desse clubinho maldito, underground. Naquela época, a gente fez o longa (baseado nos personagens) do Adão (Rocky & Hudson, de 1994)", remonta Otto. Em 2006, foi a vez de Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock'n'Roll, baseada em Angeli, mas um filme sobre a obra de Glauco não aconteceu por conta da morte do cartunista em 2010. Agora, surge o filme da Laerte.

"Nesse período muitas coisas aconteceram. O próprio universo dos personagens da Laerte mudou radicalmente, o trabalho dela se aprofundou, ficou mais existencialista e ainda mais ácido, crítico", afirma Otto, que prossegue: "E também ela virou uma mulher transgênero, eu tive um câncer bem grave, achei que fosse morrer. Foi na mesma época. Ainda bem que tive o câncer, ainda bem que a Laerte virou uma garota. Deixou o filme muito interessante", ri o diretor. Em diálogo com o "atropelo" da ficção pela vida, a cartunista define todo este processo como "a vida despencando e a gente se rearranjando". "De lá pra cá, a coisa veio dando saltos e cabriolas de forma bem interrompida, mas consistente - quer dizer, vem vindo. Depois de muitas crises que passou o País, Otto, eu, todo mundo", observa Laerte. "Ele veio, então, com a ideia de fazer o filme em um formato mais sintonizado com o modo como eu vinha fazendo as tiras, uma coisa mais livre, sem personagens. Um desenho mais solto. O filme ficou com essa marca", atesta.

A desistência de dar protagonismo aos Piratas surge como fruto de um novo contexto sócio-político. "Nesses 20 e poucos anos, eu fiz argumento, participei de elaboração de roteiro de diversas formas, participei também da desistência desses roteiros e dei palpite para novas formas e alternativas", elenca a cartunista. "O Otto teve lá os percalços dele, eu tendo os meus, me transformando. Quando a gente voltou a se contactar em nome de fazer o filme, as ideias já tinham evoluído bastante, ele já tava com intenção de abandonar a ideia de um filme exclusivamente dos Piratas", contextualiza Laerte.

O longa, então, abre espaço para outras situações e reflexões, como um político conservador que destila ódio pela figura de um minotauro e um homem casado de meia-idade que se traveste escondido da esposa. Núcleos vão se somando e, por isso, é difícil explicar narrativamente sobre o que é a obra. Soma-se a isso a metalinguagem de falar do próprio processo de realização. "O fato da iminente morte foi muito bom, porque aí eu dei um 'foda-se', tipo 'não tenho nada a perder, vou fazer o filme que eu quero fazer do jeito que eu quero fazer'. Mas daí eu não morri. Passando vergonha com o filme, agora (risos)", diverte-se Otto.

Apesar das piadas, o cineasta revela que as pré-estreias realizadas até então têm dado esperança por um boca-a-boca positivo, mesmo que o filme aborde questões tabu. "O filme trata de coisas bem pesadas em relação aos costumes. Ainda há tabus, mas veja que evoluiu muito. Quando eu nasci, nos anos 1950, era crime ser gay na Inglaterra", ilustra. Sobre reações contrárias à obra, Otto responde bem no tom do próprio filme, com mais uma piada irônica. "Acho que ele não vai ter visibilidade. A mídia é cara, as pessoas não vão ficar sabendo, a não ser que tivesse uma reação polêmica, alguém atacando. Tô tentando fazer que alguém ataque, mas não tô conseguindo".

Foto do João Gabriel Tréz

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