O fazer design não cabe na estética. Não paira no belo. Muito distante disso. Qual o significado por trás? Em qual(is) tempo(s) ele se alinha, ou se "ilinha", faz história, é história, dá corda e é puxado? A pergunta destacada acima é um dos vários estalos mentais na conversa, por e-mail, com uma das mentes mais influentes em se tratando de design hoje. Adélia Borges, além de curadora especializada em design, autora de diversos livros da área, entre eles Design Artesanato: O Caminho Brasileiro (2011). Em Fortaleza para celebrar o Dia Nacional do Design com oficina sobre "Design e Brasilidade", hoje, 5, à convite do Senac Reference, a ex-diretora do Museu da Casa Brasileira (MCB) vai fundo. Seu interesse está nas entrelinhas, de um design que é mais. Tem a ver com sustentabilidade, democratização do acesso, principalmente, inovação social. Propósito, com valor real, não apenas material. Para a crítica, que acaba de repercutir a Nuno - Poéticas Têxteis Contemporâneas, na Japan House, em São Paulo, design é ser. Está na atitude, mais do que na efemeridade das coisas.
O design, aliás, precisa rever os porquês. Reativar identidade, materiais, validade do que já está posto ou, mais uma vez, precisa ser mais, além de capa. Ter essência. História para contar. Adélia tem muita. Já foi dito que ela integra a comissão de seleção da conferência Making Futures, do Plymouth College of Art, no Reino Unido, que investiga agentes de mudança na sociedade do século 21? E as mais de 70 mostras no currículo? "Pretendo situar historicamente a preocupação com esse tema no design brasileiro e chegar até a manifestações contemporâneas, analisando as formas plurais que vêm sendo adotadas por designers de Norte a Sul do País nesta expressão", adianta sobre a vinda ao Ceará. Para a jornalista, professora de história do design, que olha para a contemporaneidade sem esquecer-se das origens, há uma "descoberta" da brasilidade como fator de diferenciação do design contemporâneo brasileiro não apenas no mercado local, como também no internacional. Confira entrevista.
O POVO: Qual a observação a respeito da diversidade que hoje o design abarca ou pode abarcar?
Adélia Borges: O Brasil tem dimensões continentais com uma diversidade cultural imensa. O design feito no interior do Rio Grande do Sul, com uma forte herança da imigração italiana e alemã, é necessariamente diferente do design praticado numa comunidade ribeirinha da Amazônia. Em 2012 fiz uma exposição na galeria Droog, em Amsterdam, chamada Viva a diversidade!. Ela se concentrava só numa tipologia, os banquinhos de sentar, e mostrava como uma mesma função pode ser atendida de formas muito diferentes entre si. Havia banquinhos projetados por designers - como o banco Mocho, de Sergio Rodrigues, de 1954 -, por comunidades artesanais e por povos indígenas. Todos no mesmo patamar, pois há várias décadas venho batalhando por uma visão não hierarquizada de nossa cultura.
OP: Tão importante quanto saber para onde ir é não perder de vista de onde se veio. Aproveitando, como se deu o caminho do design até os dias atuais?
Adélia: Creio que o design está na base da transformação que o ser humano empreende no ambiente natural ao seu redor para atender a necessidades surgidas em seu cotidiano. Uma pedra amarrada com uma fibra a um pedaço de madeira gera uma ferramenta e um cipó trançado faz um balaio que pode ajudar na coleta de alimentos. Na minha visão - que é de muitos, mas não de todos - isso é design. Outra coisa é a questão da institucionalização da atividade e de sua definição como uma profissão independente de outras, como arquitetura, engenharia etc. No Brasil o momento seminal dessa institucionalização se deu com a implantação da Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi) em 1963, no Rio de Janeiro. Eles trouxeram o programa didático totalmente pronto da Escola de Ulm, da Alemanha, que fazia muito sentido para um país altamente industrial, mas não para o Brasil. Importamos aí acriticamente a corrente funcionalista no design. Essa corrente advoga um "estilo internacional" que não se interessa pelas raízes culturais de onde o projeto é feito. Isso nos marcou muito. Já havia nos anos 1960 a atuação de designers de móveis que faziam uma criação muito antenada com a nossa cultura e com as condições de nosso país. Cito especialmente Joaquim Tenreiro e Sergio Rodrigues, mestres do mobiliário moderno brasileiro. Interessante notar que cada um deles entendia a brasilidade de um jeito. Tenreiro, português de nascimento, atentou para o absurdo do uso pela elite carioca de veludos e estofados em pleno trópico.
Ele advogava que o móvel moderno deveria ser formalmente leve. "Uma leveza que nada tem a ver com o peso em si, mas com a graciosidade, a funcionalidade dentro de seus espaços". Já Sergio Rodrigues retoma a tradição ibérica de móveis robustos que conheceu na Pernambuco de seus antepassados, utilizando profusamente a madeira e o couro com uma linguagem que deliberadamente buscou expressar nossa identidade cultural. Com a criação da Esdi, o funcionalismo virou a nossa cartilha, e quem não rezasse com ela era mau visto. Um exemplo é o designer gráfico baiano Rogério Duarte, um dos criadores do Tropicalismo, que escreveu um artigo na revista Civilização Brasileira sobre essa questão. No curso vou me concentrar em duas vozes que surgiram contra a corrente: a italiana Lina Bo Bardi, com sua visão da cultura popular como um elemento propulsor para a criação brasileira, e o pernambucano Aloisio Magalhães, que criou o importante Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) nos anos 1970. Aloisio definiu o design como uma atividade essencialmente criadora de cultura, visão que compartilho inteiramente.
OP: O design hoje ele é acessível ao consumidor final? Como avalia essa questão e o fomento do mesmo, no quesito inovação, para que se materialize na cena brasileira?
Adélia: Há algumas décadas só os produtos destinados aos consumidores de maior poder aquisitivo tinham bons projetos de design. Hoje vejo uma democratização maior. No entanto ainda falta muito a se trilhar nesse sentido. Só com a absorção maior do design pelas empresas brasileiras é que chegaremos lá. Estamos longe, por exemplo, da cultura de inovação dos empresários italianos, que são mais dispostos a correr riscos e são recompensados pelo mercado internacional por essa atitude.
OP: Indo mais a fundo, quais seriam os desafios do design nacional?
Adélia: Os desafios no campo nacional são os mesmos do resto do mundo: basicamente, qual é o propósito com que fazemos design? Em abril último o Vitra Design Museum, da Alemanha, mantido por uma fabricante de móveis, promoveu um debate em Milão que tinha o tema "The Politics of Design" (A política do design). Na convocatória, eles diziam: "O design é uma atividade política. Todos os dias, designers de todo o mundo tomam decisões sobre questões sociais complexas, como inclusão, identidade e sustentabilidade. Isso faz do design uma ferramenta poderosa para a mudança social e política, mas qual o efeito real nas coisas? De que maneiras o design pode realmente contribuir para solucionar os problemas mais prementes do mundo? Como o design pode ser parte da solução e não o problema?". Faço minhas essas palavras!
OP: O que é inovação nesta área e tem atraído seu olhar?
Adélia: A inovação que me interessa mais é a inovação social. Ou seja, aquela de fato comprometida com a procura de um mundo melhor para camadas mais amplas da sociedade, aquela que usa e amplifica os recursos locais, a valorização dos territórios, a valorização dos patrimônios culturais populares. E que responde a tudo isso de uma forma contemporânea. Tenho uma profunda ligação afetiva com o Ceará. Vou ao Estado desde 1996, quando comecei a dar cursos no Centro de Design Ceará. Então vou responder com exemplos do Estado. Tive grande alegria de incluir vários projetos do estado na exposição que inaugurou o Centro Sebrae de Referência Cultural (Crab) em 2016, entre os quais um aparador projetado pelo Érico Gondim. Ele faz ótimo uso da palha de carnaúba, esse material tão lindo. Nascido em Juazeiro do Norte, Alexandre Heberte é a meu ver um dos maiores designers e artistas têxteis do Brasil hoje. Ele inova no uso dos materiais - por exemplo incorporando lixos de produtos industriais - e na linguagem, sem perder o seu chão e o seu norte. Lino Villaventura é um dos grandes nomes da moda contemporânea. Ano a ano não me canso de admirar sua produção. E Espedito Seleiro é o mestre dos mestres, foi um grande prazer ter escrito um dos textos de introdução do livro que a Editora Senac Ceará escreveu sobre ele. O trabalho dele une como poucos a tradição e a inovação.
OP: Fortaleza acaba de ser eleita uma das 66 cidades criativas da Unesco, na categoria Design. Como você recebe a novidade? O que isso pode impactar no futuro local?
Adélia: Fico imensamente feliz com essa conquista e quero parabenizar a todos que se empenharam por isso. Esse reconhecimento não é um processo fácil e a competência com que prepararam o dossiê da candidatura é louvável. Certamente o impacto para o design local será grande. Torço para que os governos do município e do Estado e a sociedade civil consigam implementar cada vez mais políticas transversais que resultem numa Fortaleza Criativa, sempre tendo em mente o propósito de um design inclusivo.
Workshop Design e Brasilidade - Adélia Borges
Quando: Hoje, das 9h às 17 horas
Onde: Senac Reference (Avenida Desembargador Moreira, 1301 - Aldeota)
Vagas: 40
Quanto: R$ 250
Mais informações: cursos.ce.senac.br