Entre 1988 e 2019, cabem oito presidentes da República. Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro. Quase 31 anos da entrada em uma ciclo democrático exposto em um rito giratório de campanha, posse e entrega que, independentemente de orientações políticas e ideológicas, não conseguiram envelhecer o discurso dos Racionais.
Na primeira noite em que Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay estiveram no Credicard Hall para celebrar 30 anos de história e gravar um DVD, ninguém mencionou nomes de governantes no palco ou bradou palavras de ordem contra a atual gestão. Curioso saber que um dos gêneros mais combativos não promova necessariamente revoltas em suas plateias. Ao contrário dos shows de rock, onde o despertar se dá como cotas, em ilhas de lucidez cercadas por euforias adrenalizadas e outras celebrações à vida, o rap dos Racionais mantém o peso por mais de duas horas de um show monotemático. A consciência, assim, não é um arroubo civil momentâneo, mas a própria cultura, sua única possibilidade de existência.
As letras dos Racionais, estudadas em teses acadêmicas e usadas, ao menos até 2018, em vestibulares, já diziam tudo. A turnê Racionais Três Décadas sobrevoa os passos do grupo mais importante parido da cultura de periferia urbana no Brasil. O conjunto de sua obra já está em processo de reconhecimento histórico para receber as mesmas reverências narrativas de Noel Rosa, que levava ao alto da pirâmide intelectual a poesia suburbana do Rio nos anos 1930, ou da sociologia empírica de Luiz Gonzaga, que revelava, a partir dos anos 1950, a vida, gastronomia, roupas, sotaque e todo o Brasil que existia do umbigo sulista para cima.
Brown, Gonzaga e Noel cantam lugares que muitos brasileiros só conhecem por suas músicas, mas um porém os diferencia: ao contrário do samba e do baião, o rap brasileiro nasceu, a partir dos Racionais, como o filho rebelde que não troca a revolta pela dança, assumindo tudo de bom e de ruim pela decisão.
A verdade é cortante quando Brown, Edi, KL Jay e Blue voltam aos clássicos desde 1988, ano em que saiu a coletânea Consciência Black nº 1, até 2014, de Cores e Valores. O grupo cresceu, o tempo das rimas se ajustou, a produção deu um salto e, mesmo os possíveis escorregões machistas, como aqueles em que caíram Noel, Gonzaga, Bezerra da Silva, Chico Buarque e todo o cronismo de época brasileiro para retratar personagens de meios igualmente áspero às mulheres, têm sido reavaliados pelos rappers. E muito graças às próprias mulheres periféricas, que passaram a contestar trechos em que poderiam parecer menores do que os homens quando, muitas vezes, são rainhas sem rei.
Negro Drama profetiza noites de plateias amontoadas como a de 2019. Saiu no álbum Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, de 2002, quando a bomba já havia explodido e os Racionais haviam se tornado um case. Foi por aí que olharam para o público e perceberam tonalidades mais claras de meninos e meninas que cantavam letras bíblicas de cor deixando a lágrima descer. Não eram mais só negros e mestiços dos bairros periféricos, mas brancos de todas as pigmentações e ricos de todos os sobrenomes. Negro Drama fala de como, para desespero dos pais que entendiam serem os Racionais porta-vozes de uma criminalidade glorificada, seus filhos passaram a se sentir representados por aquela verdade e a amá-la. Para ser grande, ensinava Brown, não precisava passar fome e, para ser burguês, não precisava ter os olhos claros. O playboy da periferia pede tênis Nike para a mãe doméstica sem jamais lavar uma louça enquanto ela sai para trabalhar. Três décadas e oito presidentes depois, o que dizem poderia ter sido escrito ontem. Feliz o povo que não precisa de um Racionais. Triste o povo que não tem um Racionais. (Julio Maria/ Ag. Estado)