Linha vermelha, agulha grossa, gestos precisos — entre os dedos negros de Charlene Bicalho, com unhas curtas e quadradas, imagens de ancestrais também negras são costuradas a um singelo vestido branco que enche-se de histórias. O trabalho é lento, contínuo. O movimento entre as matriarcas iconográficas e a artista, registrado na videoinstalação Das Avós (2019), é refletido por projetores nas paredes, no chão e no teto da sala organizada pela proponente Rosana Paulino na 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil/ Comunidades Imaginadas, que ocorre até 2 de fevereiro de 2020 no Sesc 24 de Maio, em São Paulo. Artista convidada, Rosana reflete em sua obra: quem seriam suas ancestrais em um País marcado pela escravidão?
Nascida em 1967 numa casa cheia na Freguesia do Ó, na capital paulista, Rosana Paulino é um dos nomes mais expressivos da chamada novíssima arte brasileira. Artista visual, educadora, curadora e doutora em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo, a pesquisadora realiza um amplo trabalho pautado em questões sociais, étnicas e de gênero, investigando a construção do corpo negro na sociedade brasileira. Na videoinstalação Das Avós, criada a convite da Bienal, o matriarcado das mulheres negras é revivido.
"Das Avós é um trabalho ligado à ancestralidade, pensando na importância dessas mulheres para a manutenção das famílias negras. A gente tem a questão da chegada dessas famílias através da escravidão — quem não foi dividido lá, foi dividido no navio; quem não foi dividido no navio, foi nas vendas. Houve uma quebra dessas famílias e (o trabalho reflete sobre) a importância dessas mulheres como reagregadoras das famílias. São mães de santo, por exemplo. São figuras de ancestralidade. A ideia é essa, é reconectar isso com o passado e com o presente", elucida a artista. Outrora orientanda de Rosana, a performer capixaba Charlene "costura as imagens como se trouxesse de volta no corpo dela essas mulheres. Essas imagens se refletem no chão suaves, fantasmagóricas, como que dizendo 'nós estamos aqui, nós estamos aqui', que é pra não esquecer esse passado".
Além das mães de santo, Rosana elenca líderes comunitárias, professoras, artistas e escritoras como matriarcas que reúnem e compõem novas famílias negras no enfrentamento do racismo cotidiano. "O feminismo negro está muito à frente no País em termos de questões sociais. Eu gosto muito de trabalhar com essa memória de arquivos porque, para entender o que o País passa hoje, nós temos que olhar pro passado. O Brasil é um País que não se olha, não se enxerga, não se vê. O que justifica uma pessoa tomar 80 tiros e o País não parar? Isso é um escândalo. Pra gente entender esse escândalo, a gente precisa entender como o País foi formado. É fundamental ir lá atrás para entender como esse corpo foi desvalorizado, criminalizado, visto como sub-humano para entender porque o corpo negro leva 80 tiros e tudo segue como a coisa mais normal do mundo. Não é normal, não tem nada de normal nessa história", finaliza.
21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil - Comunidades imaginadas
Quando: Visitação aberta ao público até 2 de fevereiro de 2020 (de terça a sábado, das 9h às 21 horas; domingos e feriados, das 9h às 18 horas)
Onde: Sesc 24 de Maio (Rua 24 de Maio, 109, Centro - São Paulo)
Gratuito
Informações: www.bienalsescvideobrasil.org.br