No poema Quando, publicado no livro Dia do Mar (1947), a poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen medita sobre a morte. Do alto dos então 28 anos que a artista tinha quando da publicação, a segunda lançada por ela, o escrito reserva uma mirada positiva e madura para a finitude da vida: "Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta / Continuará o jardim, o céu e o mar, / E como hoje igualmente hão-de bailar / As quatro estações à minha porta / Outros em Abril passarão no pomar / Em que eu tantas vezes passei, / Haverá longos poentes sobre o mar, / Outros amarão as coisas que eu amei. / Será o mesmo brilho, a mesma festa, / Será o mesmo jardim à minha porta, / E os cabelos doirados da floresta, / Como se eu não estivesse morta". Depois dali, Sophia viveu até os 84 anos, lançando dezenas de livros de poesia e prosa, ensaios e peças teatrais, firmando-se como um dos principais nomes da literatura portuguesa do século XX. Neste tempo, levou vida e obra em consonância, ambas norteadas por interesses comuns. No dia que marcaria o centenário da poeta, o Vida&Arte imerge em aspectos desta convergência.
De partida, Sophia geralmente é ligada à abordagem reverente - e constante em sua obra - ao mar e à natureza. A professora de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP) Paola Poma, porém, ressalta outros lados da produção da poeta. "Sua obra abarca uma complexidade de questões: políticas, sociais, míticas, artísticas, religiosas, culturais e pessoais. E não se restringe apenas ao universo português, como também não se limita à poesia. De todo modo, me parece que a justiça é um tema norteador de sua obra, assim como a clareza e concisão da linguagem são fundamentais para a sua escrita", aponta.
A forma poética de Sophia é também ressaltada pelo poeta e produtor cultural Talles Azigon. "Há uma espécie de neoclassicismo, ela fala muito dos mitos gregos. Apesar de muitos versos e palavras que bebem da cultura clássica grega, existe outra parte de uma Sophia que é tão simples quanto a água, o ar. As palavras se encaixam. Os poemas dela parecem ondas, fluxos. O movimento da poesia de Sophia é marítimo", relaciona o curador da próxima Bienal Internacional do Livro do Ceará.
Um dos principais pontos de consonância entre vida e obra de Sophia é a militância. Grande parte da produção da poeta se deu sob o regime ditatorial de Antônio Salazar, ao qual a poeta se opunha fortemente."Se nos primeiras livros as questões políticas aparecem de modo mais sutil, à medida que o tempo passa e a opressão se torna mais ostensiva, coloca-se, corajosamente, de modo mais combativo nos seus livros", contextualiza Paola. No poema 25 de Abril, publicado em 1977, a poeta faz menção à conhecida por Revolução dos Cravos, que, em 1974, destituiu o Estado Novo português. "Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo", escreveu. A valorização da democracia foi também buscada em ações: em 1969, foi uma das fundadoras da Comissão Nacional dos Presos Políticos; já na democracia, elegeu-se deputada pelo partido Socialista na Assembleia Constituinte de 1975.
Entre os temas políticos, falou de tortura, opressão, exílio, pobreza. "O fato de ter um projeto poético que busca uma totalidade e uma positividade original - como afirma Eduardo Lourenço - já a coloca num lugar de destaque em relação aos seus precursores. Essa diferença vinculada à preocupação constante de pensar o mundo é a matéria básica de sua poesia, já que 'aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo'. Não há atualidade maior do que essa - em todos os sentidos", destaca a professora, citando um trecho de Arte Poética III, discurso de Sophia proferido quando premiada por Livro Sexto e posteriormente publicado. "Hoje, infelizmente, estes poemas marcadamente históricos podem ser reatualizados. No Brasil, com a crescente onda bolsonarista, é sempre bom relê-los e lembrar em uníssono com a poeta - 'Mas ao Brasil que tortura/Só podemos dizer não'", sublinha Paola, citando o poema Brasil 77.