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Jornalistas do O POVO analisam a comédia cearense "Bate Coração"
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Jornalistas do O POVO analisam a comédia cearense "Bate Coração"

| V&A Viu | O filme estreia hoje em salas de 12 estados do País
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O ator Aramis Trindade interpreta a travesti Isadora em Bate Coração
 (Foto: fotos Jarrod Bryant/ Divulgação)
Foto: fotos Jarrod Bryant/ Divulgação O ator Aramis Trindade interpreta a travesti Isadora em Bate Coração

Coração acelerado

por João Gabriel Tréz

Uma cabeleireira travesti que construiu ao redor de si uma verdadeira família por meio do afeto. Um publicitário machista e imaturo que precisa levar uma "sacudida" da vida. Duas realidades bem diferentes são ligadas pelo acaso na comédia espiritualista cearense Bate Coração, dirigida por Glauber Filho. Baseado em dois textos teatrais de Ronaldo Ciambroni, o roteiro do longa - escrito em conjunto pelo dramaturgo, pelo cineasta e pelo ator Daniel Dias, que interpreta o guia espiritual Otto - é norteado por um caráter acolhedor, que vai de agregar vivências distintas a tramas também bem diferentes entre si. Unindo tema espiritualista, campanhas panfletárias, diversidade de gênero e tom de comédia, Bate Coração é bem intencionado e desorganizado.

As vidas de Isadora e Sandro, protagonistas do longa filmado em Fortaleza, se conectam numa noite de ano novo em que o publicitário sofre um ataque cardíaco e a cabeleireira morre atropelada. Sandro acaba recebendo o coração de Isadora, doadora de órgãos. É isso que aproxima de fato os dois protagonistas - a alma de Isadora vai junto do órgão transplantado e ela passa não apenas a acompanhar Sandro, mas também a influenciar novos comportamentos nele.

O roteiro faz uma adaptação das peças Acredite, Um Espírito Baixou em Mim e O Coração Safado. Talvez por tentar unir duas obras diferentes em uma é que a história de Bate Coração acabe parecendo ser tantas. Ressalte-se que o filme não é longo - o que quer dizer, em termos diretos, que há uma sucessão intensa e pouco dosada de arcos narrativos dispostos seguidamente se acumulando, o que causa impressão de exagero. Há uma clara campanha a favor da doação de órgãos, a abordagem espiritualista, o discurso de tolerância e momentos com tom de comédia, com cada ponto destes trazendo diferentes universos e aspectos específicos.

Algumas dessas "subtramas", por assim dizer, funcionam melhor que outras. Até, inclusive, por terem possibilidades distintas de aprofundamento. Entre algumas relações amorosas cuja existência é menos inspirada, se destacam os bons momentos de humor protagonizados por Patricia Dawson e Denis Lacerda, que interpretam a dupla Laysa e Madeinusa. Na trama, as duas personagens são funcionárias do salão de beleza de Isadora. Intérpretes do coletivo cearense As Travestidas, Patricia e Denis possuem não apenas o melhor timing do elenco, mas também as melhores piadas.

Abrindo espaço para a aproximação entre a temática religiosa/espiritualista e um olhar de diversidade, Bate Coração pode guardar momentos potencialmente problemáticos, mas também é possível entender que agrega boas intenções em sua gênese. Vale ressaltar que o filme é uma produção da Estação Luz Filmes, produtora ligada a movimentos mais conservadores, o que atesta muito sobre o resultado final do produto. No entanto, entre o problemático e o edificante, Bate Coração é tão rápido, quase atropelado e não muito aprofundado que acaba soando, no fim das contas, inofensivo. Para o bem e para o mal.

Confira o trailer

Por isso a gente pena, sofre e chora

Há mais a ligar Isadora e Daniela que a presença da canção Bate Coração no seus respectivos repertórios para shows nos basfons alencarinos. E não é só o fato destas duas mulheres trans ganharem vida na tela grande através da interpretação de um ator cis, Aramis Trindade no caso da primeira, e de uma atriz também cisgênero, Denise Weinberg, no caso da segunda. Personagens fundamentais de dois longas cearenses que estão em cartaz no circuito nacional, as duas são resultantes de olhares opostos, tanto dramática quanto cinematograficamente

Não deixa de ser curioso que ambas tenham a morte como elemento definidor de suas trajetórias, ainda que em direções contrárias, tanto em Bate Coração quanto em Greta. No filme dirigido por Glauber Filho, a jornada de Isadora é apresentada a partir de seu falecimento. Já no longa de Armando Praça, a iminência da morte de Daniela é determinante para o rumo dos acontecimentos em torno dos três protagonistas (além dela, Pedro, o personagem de Marco Nanini, e Jean, do cearense Démick Lopes). Ou seja, é a proximidade do fim da cantora que provoca o início da trama. Sua jornada é rumo à morte, não depois dela, como no caso da personagem anterior.

Isadora, a protagonista de Bate Coração, é solar. Uma travesti generosa, cujo passado cis não só é revelado ao espectador como é parte importante da narrativa. Além disso, antes de seguir seu caminho rumo à espiritualidade, ela se empenha numa missão solidária para ajudar seus afetos do plano carnal, digamos assim.

Já Daniela é amarga. E é justamente essa amargura a responsável por alguns dos diálogos mais interessantes do filme. Ainda que por caminhos outros, Daniela também empenha muitas das suas últimas horas na tentativa de amparar seus afetos na sua ausência.

A condução destas duas personagens diz muito das intenções cinematográficas de cada um dos dois filmes (e de seus realizadores, por óbvio). Além de necessário, é fundamental atentar para isso ao se debruçar sobre estes trabalhos. Porque se há muitas diferenças entre eles, e há, elas são propositais.

Isso aponta para a pluralidade da produção audiovisual que se vive no Ceará hoje. E é sensacional ter simultaneamente em cartaz Bate Coração e Greta. O primeiro, um filme de mercado, com propósitos comerciais e, por que não dizer?, uma mensagem intencional. O segundo, um filme de autor, com outras pretensões estéticas, e mais interessado em suscitar dúvidas que apontar caminhos.

Ambos realizados com excelência; ambos estabelecendo canais de diálogo com seus públicos específicos; ambos contando as histórias da maneira e no tom que seus realizadores optaram.

Juntos mostrando que a riqueza de uma cinematografia está na capacidade que ela tem de abraçar e abarcar a maior quantidade possível de propostas estéticas, narrativas e temáticas.

Daniela e Isadora têm já, em suas biografias, o reconhecimento de se fazerem faróis para nos mostrar isso. Salve!

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