Haviam se passado menos de quatro meses daquele 9 de novembro de 1989. Um cinzento e quase intocável símbolo de uma Berlim dividida começava a se tornar a representação otimista de um novo momento político. Pouco a pouco, desfazia-se o que tinha sido a barreira que separava não apenas as duas metades da capital alemã, mas que isolava a parte ocidental de todo o País, então dominado pelo setor soviético.
E veio a queda. Dos mais de 100 quilômetros de muro, trechos completos foram vendidos e outros doados como presente a várias cidades - um pedaço dele está em Nova York, por exemplo. Muitos fragmentos foram levados pelos próprios cidadãos e uma parte virou material de construção. No entanto, um trecho de 1.113 metros teve destino diferente na história. Preservado da demolição e chamado de Kunstmeile ("The art mile" ou "A milha da arte"), o trecho vem recebendo uma centena de grafites nestas últimas três décadas. Atraiu não só artistas, mas turistas também.
Como boa parte destas pinturas foi feita na face leste do muro (a que ficava voltada para o lado comunista), o trecho foi batizado também de East Side Gallery e inaugurado, oficialmente, em fevereiro de 1990. A maior seção do Muro de Berlim ainda de pé fica às margens do rio Spree e é considera a galeria de arte a céu aberto de maior duração no mundo.
O passeio, que rende uma boa caminhada, pode começar por um pequeno museu que explica como funcionava o Berline Mauer (Muro de Berlim), mas que também recebeu o nome de "death strip" (faixa da morte) por conta dos obstáculos e dos militares armados que impediam a passagem para o outro lado. Fugas mirabolantes e as diversas etapas da construção e da queda do muro aparecem em projeções audiovisuais.
Saindo dali, a história vai se transformando em tinta. Entre os famosos murais pintados está a icônica imagem do beijo fraternal entre o presidente comunista alemão Erich Honecker e o líder soviético Leonid Brezhnev. Sob a legenda "Deus me ajude a sobreviver a esse amor", o grafite retrata a verídica cena ocorrida durante a celebração dos 30 anos da fundação da Alemanha Oriental. Outro grafite que ficou famoso é de um Trabant (o veículo mais comum da antiga República Democrática Alemã) "atravessando" o muro.
No entanto, o mais icástico dos artistas da East Side Gallery é Thierry Noir, considerado o primeiro a usar o muro como tela para suas pinturas. O francês, que viveu intensamente a Berlim dos anos 80, pintava enormes figuras de cores ousadas, quase sempre em formato da letra "F" - a primeira letra de freiheit e freedom (liberdade, em alemão e em inglês).
A complexa reunificação alemã, o fim da Guerra Fria, a tolerância e a imigração são outros temas que aparecem com frequência entre as imagens pintadas naquela época ou nas que vivem surgindo no muro.
Ao contemplar toda a extensão da "milha da arte", recomenda-se escolher uma das diversas espreguiçadeiras, que são espalhadas às margens do rio Spree no verão, para curtir uma das muitas opções de cervejas alemãs. Em tempos mais frios, a sugestão é pedir um café em um dos floating lounges (uma espécie de café flutuante) que ficam por ali ancorados. De preferência, tendo como trilha sonora os álbuns Low, Heroes e Lodger, a trilogia que foi gravada na época em que David Bowie morava na cidade.
Outros muros
Por toda capital alemã (e em algumas outras cidades espalhadas pelo mundo) é possível encontrar fragmentos do muro contendo intervenções artísticas, mas não um trecho da mesma extensão como o da Kunstmeile. São mais de 240 trechos de muro que foram dispostos em 146 cidades, segundo a Fundação Federal pela Reconciliação da Ditadura da República Democrática Alemã. Os pedaços eram doados como o símbolo de um novo momento político. Um trecho do muro, por exemplo, se encontra nos jardins da sede da ONU, em Nova York.
Sempre polêmico
Mesmo com sua queda, o Muro de Berlim não deixou de ser polêmico. Em 2009, uma ONG começou um trabalho de restauração na East Side Gallery. Alguns artistas não concordaram em retocar seus trabalhos. Para muitos deles, a arte urbana só tem sentido com o contexto histórico em que foi feita e é mutável na sua essência.
O muro como souvenir
Um dos antigos postos de controle de fronteira virou loja para turistas. Claro que vende aqueles pedacinhos de muro em plaquinhas de plástico (o que duvido que sejam verdadeiros!) e até coloca o carimbo da Alemanha Oriental em antigos passaportes - só nos que estão fora da validade. É possível também encontrar as imagens da maioria dos grafites, reproduzidas nos mais diferentes suportes. Para todos os gostos. Mas o mais bacana mesmo é tirar uma "selfie à moda antiga" nas famosas Photoautomaten (cabines de fotos automáticas) espalhadas por vários pontos turísticos, como a East Side Gallery.