No dia 22 de dezembro de 1960, a lei 3.857 criou a Ordem dos Músicos do Brasil e dispôs sobre a regulamentação do exercício da profissão. Quase duas décadas depois, o reconhecimento legal de artistas e de técnicos de espetáculos foi garantido pela lei n° 6.533, sancionada em 24 de maio de 1978. Tais legislações, entretanto, sofreram significativas alterações no último dia 11 de novembro, com a criação da Medida Provisória (MP) 905 pelo presidente Jair Bolsonaro. A MP do programa Verde Amarelo revogou 37 pontos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e retirou trechos que constam em outras 22 leis e decretos que tratam de matérias trabalhistas, tributárias e previdenciárias. Já chamada de nova reforma trabalhista, a medida removeu a obrigatoriedade de registro profissional para exercício de diversas profissões — como a de artista.
Emitido pela antiga Delegacia Regional do Trabalho de cada estado, o registro profissional — popularmente conhecido como DRT — era obtido principalmente por artistas cênicos, como atores e circenses, e também técnicos. "Mas existe muita polêmica no setor artístico em relação a esse registro", pontua a advogada e mestre em Direito Cecília Rabelo. "Alguns artistas entendem que esse tipo de registro cerceia a liberdade de expressão, que a arte e a profissão do artista são inerentes à liberdade. Muitos deles afirmam que não deveria existir o registro porque o artista é independente do Estado. Outros já acreditam que o registro é importante por causa da precarização da atividade, que ter o registro torna mais formal. Parte dos artistas entende que o registro é benéfico. Existe muita divergência na classe em relação a essa obrigatoriedade", continua.
Vice-presidente da Comissão de Direitos Culturais da OAB, Cecília acredita que a situação legal da classe artística merece uma análise sensível por ser uma categoria diferenciada de trabalho. "No campo artístico não existe nenhum conselho profissional. A Ordem dos Músicos do Brasil, por exemplo, é uma associação sem fins lucrativos que não tem natureza jurídica de conselho. Em empresas grandes o DRT é obrigatório, mas existe uma informalidade muito grande em relação a isso. Eu acredito que tirar o registro pode enfraquecer o fortalecimento do setor. Ao mesmo tempo, eu penso também que exigir um registro de um artista — ainda mais no governo atual — é uma forma de controle e isso tem que ser levado em consideração", complementa.
"É uma burocracia", admite o ator, dramaturgo, diretor teatral e compositor Orlângelo Leal. "Mas o registro profissional é importante sim. Valoriza a classe, categoriza, dá um certo empoderamento. Nós atravessamos os anos 1980 com uma visão sobre o que é ser artista, nos anos 2000 já é outro olhar. É o artista como autônomo, como empresário, como alguém que gere a própria carreira", defende o também criador da companhia cenomusical Dona Zefinha. Orlângelo, que possui DRT pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado do Ceará (SATED) e registro na Ordem dos Músicos há décadas, enumera como vantagem da sindicalização o apoio jurídico dispensado quando artistas são alvo de fraudes.
Localizada em Itapipoca, interior do Ceará, a Casa de Teatro Dona Zefinha já recebeu mais de 100 companhias, bandas e coletivos teatrais da América Latina, da Europa e dos Estados Unidos. O grupo responsável pelo espaço não exige DRT dos artistas independentes nos contratos trabalhistas, mas defende a manutenção do direito conquistado. "Atualmente, todos os membros do grupo Dona Zefinha sobrevivem dos cachês e das atuações como artistas, sendo todos registrados porque eventos como Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga (FNT) exigem. Essa medida do Bolsonaro sem consultar a classe é bizarra, como ele é. Ele quer destruir tudo que as classes conseguiram erguer como proteção e defesa", critica.
O FNT tem consultoria executiva da Quitanda das Artes, agência e produtora cultural sob gestão de Paulo Feitosa desde 2007. "Consideramos a retirada do registro profissional mais um ato abusivo no País. Fica ao critério do artista se registrar ou não, mas é importantíssimo que esse sindicato e essas organizações existam e tenham um diálogo estreito com a categoria. Renegamos essa posição do governo de extinguir direitos trabalhistas legais para quem quer estar legalizado. Condenamos na totalidade essa redução de direitos trabalhistas", assevera o empreendedor social. Para Paulo, a sindicalização não deve ser obrigatória, mas as medidas do presidente representam um prejuízo simbólico. "É mais uma ação para fragilizar o campo artístico, o campo que traz uma reflexão social".
Advogada especialista em direitos trabalhistas e professora do curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, Beatriz Xavier também ressalta prejuízos oriundos da MP do Verde Amarelo. "O registro profissional é o reconhecimento de um segmento da economia. Assim como todos os registros que dizem respeito à atividade profissional, é uma questão de identidade do trabalhador e constrói provas em seu favor. Para efeitos de piso salarial de categoria, isso é importante", elucida. "Basicamente, tirar a obrigatoriedade do registro da profissão é uma medida de enfraquecimento da organização sindical como muitas outras que têm sido feitas. O que a gente está vendo agora nessa chamada reforma — que, na verdade, são desmontes — é a retirada de representação dos sindicatos, descaracterizando o segmento da economia em qual cada trabalhador está inserido. Esse desmonte aparentemente não é um problema tão grave, não causa um impacto econômico direto, mas quando a gente observar o resultado das negociações coletivas e da luta pela não redução de direitos vamos ver que menos pessoas serão alcançadas pelas atividades dos sindicatos. Esse conjunto de mudanças, mesmo as mais sutis, traz muitos prejuízos no presente e futuramente", finaliza.