O POVO - Você flerta com o jazz, R&B, pincela com o samba-rock, cita o iorubá... Como você caracteriza sua música e, consequentemente, essas referências foram adquiridas de onde?
Xenia França - A minha musicalidade e meu jeito de expressar música vêm da maioria das coisas que eu ouvi na vida. No meu primeiro disco eu escolhi reverenciar o som da diáspora através do que eu conheci primeiro na Bahia. Desde os instrumentos presentes tanto nos blocos afro, afoxés e, obviamente, no candomblé, até a percussão cubana, terra que eu conheci há pouco tempo que tem uma identificação muito forte culturalmente com a Bahia. Escolhi fazer uma fusão com arranjos um pouco mais complexos com esses tambores, bases eletrônicas e bateria. Um cuidado maior com as harmonias para que as melodias fossem privilegiadas e acabassem dando esse ar jazzístico porque eu escuto muita coisa. Nesse sentido, me influenciam também de Ella Fitzgerald e Billie Holiday a Harbie Hancock e Erikah Badu. A presença dos sintetizadores e guitarras dá uma característica mais pop e amarra tudo. Em algumas canções existem claves de samba-reggae e de ijexá, ritmos comuns na minha terra. Tive um processo muito lindo e longo de laboratório com meus produtores. Meu disco foi concebido quase como uma experiência alquímica. Lento e cuidadoso, de pegar tudo o que me influenciou e transformar em uma másica de linguagem única, que fosse a minha cara. Sem estereótipos e caricaturas.
O POVO - Nas suas letras, você coloca em evidência temas como o empoderamento e a cultura afro-brasileira. A partir de que momento você enxergou que a música seria esse canal para se construir uma militância feminista negra?
Xenia França - Todas as letras do meu disco - as que eu compus e as que me escolheram - são auto-representativas. No momento que eu entendi que não seria possível avançar sem resolver as crenças negativas e cargas históricas que infelizmente ainda vão continuar por muito tempo na sociedade, mas que para mim era importante conversar com todos os monstros internos que ainda me assombravam e que me diziam que eu não era capaz de realizar nada de útil para mim mesma, nem para os outros, eu enfrentei o desafio de provar o contrário. Eu quase acreditei que a minha existência não valia nada, e o meu disco é um ensaio/manifesto de auto-cura para isso e outras coisas. Através da reconexão com a minha ancestralidade, eu me reconheço e me aceito como sou. Acessei um aparato tecnológico ancestral para começar um processo maravilhoso de ressignificação da minha existência nesse planeta. Eu sinto muito pelo passado, tenho orgulho do meu presente e estou pronta para o futuro. Independente do olhar do outro ao meu respeito, o que o racismo em todos os níveis e suas derivações pensam sobre mim, não é da minha conta. Tudo isso não me afeta mais. Esse foi o presente que eu meu disco me deu. Ele abriu um portal para outras dimensões de possibilidades para tudo o que eu sou e o que ainda não sei que eu posso ser.
O POVO - Você é a primeira artista brasileira a integrar a plataforma do COLORS. Como surgiu o convite e, a partir dessa experiência (e já pegando carona também no Grammy Latino), como você pensa sua trajetória em nível mundial?
Xenia França - Logo que eu lancei o disco aqui no Brasil, houve um interesse da Disk Union, o meu selo japonês, em lançar ele lá no Japão. Então, concomitantemente, ele foi lançado no presente aqui no Brasil e no futuro no Japão, 24 horas depois. Eu achei isso o máximo! Meses depois, recebi o convite para fazer o meu primeiro show nos EUA, me apresentei no Central Park pela primeira vez e foi incrível. Aí passei a ir lá com frequência, uma dessas vezes foi pra concorrer ao Grammy Latino nas categorias “Melhor Álbum Pop Contemporâneo" e “Melhor Canção”. Não levei as estatuetas, mas essa foi uma indicação que reverberou muito positiva e abriu novos caminhos. Voltei lá em março desse ano pra me apresentar no SXSW Festival, que também foi muito especial. O convite do COLORS veio antes da indicação ao Grammy. Foi em outubro do ano passado, quando eles entraram em contato com meu escritório pra fazer o convite por e-mail, eu nem sabia nem como nem porque eles sabiam que eu existia... Ficamos até maio de 2019 em negociação até eu ir pra Berlin não só pra gravar o programa, mas pra fazer um show no Ministério das Relações Exteriores da Alemanha e para a premiação BMV Awards, onde meu clipe “#PQMC” estava concorrendo a “Melhor Cinematografia” e “Melhor Clipe”. Perdemos pra “This is America”! (hahaha) Acabo de lançar uma edição limitada do meu disco em vinil numa colaboração entre os selos Disk Union e 180gr Na Europa, EUA e Japão. E também tô me preparando pra mais uma turnê nos EUA em janeiro de 2020. Até agora eu não consegui entender direito tudo isso... Mas me sinto feliz do meu trabalho chegar em tantos ouvidos ao redor do mundo... Me orgulho muito desse interesse de fora também. Uma das características da minha personalidade é estar aberta pro novo. Mesmo que às vezes cause um pouco de pânico, eu amo me conectar com pessoas. Venho projetando isso sem saber desde criança. Nas minhas brincadeiras, eu era alguém muito importante que tinha que viajar o mundo inteiro e falava vários idiomas! (hahaha) Acho que o meu trabalho tem me dado a chance de realizar o que até outro dia era fantasia. Esse disco é visto lá fora de uma maneira muito universal, todas as criticas sobre ele falam isso. Ele toca muito as pessoas e parece que fala muitas línguas mesmo. Eu me orgulho muito do que eu faço e espero poder continuar ampliando os meus horizontes através do que eu mais amo fazer na vida, que é música.
O POVO - Como você encara o Dia/Mês da Consciência Negra? Nós temos o que celebrar, principalmente levando-se em conta o atual momento do País?
Xenia França - Eu celebro esse tempo com muito mais referenciais pretos do que tive na infância, tentando criar as próprias narrativas e melhorando as qualidades de vida com aquele esforço dobrado que é destinado a essa população. Eu celebro a juventude pulsante e criativa que, mesmo com pouco ou quase nenhum recurso, está mais uma vez fornecendo novos conceitos e fundamentos para o desenvolvimento da cultura e que não parece querer esperar nenhum salvador da pátria realizar as coisas que acreditam. Existe uma boa intenção no Mês da Consciência Negra, que é gerar reflexão a respeito da desigualdade social gerada pela não reparação pós-escravidão, violência, invisibilidade negra, genocídio, etc. Mas num único mês é gerado um número absurdo de conteúdo a esse respeito... Mas e os outros meses do ano? E a vida vulnerável das pessoas todos os dias, quando ela vai mudar? Quando nós, artistas, somos convocados pra responder essas perguntas... Quem está nos ouvindo?
O POVO - Quais seriam os passos, na sua opinião, para o Brasil superar o racismo, a intolerância, enfim, essas questões?
Xenia França - O problema do racismo é das pessoas brancas. Enquanto as pessoas brancas não se responsabilizarem pelo problema estrutural do qual todas elas se beneficiam, nada será realmente resolvido.
O POVO - O que esperar do show aqui em Fortaleza e qual o repertório da apresentação? Quais os músicos que irão te acompanhar?
Xenia França - Os meus músicos são Juliano Vale (piano e sintetizadores), Pipo Pegoraro (guitarra), Vitor Cabral (bateria), Felipe Pizzu (baixo) e Márcio Manchinha (percussão). Eu tô muito feliz de finalmente levar a minha nave para Fortaleza. Tô muito ansiosa, mas tenho certeza que será uma noite muito especial de experiência extra sensorial.