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Entenda por que a homenagem a Elizabeth Bishop pela Flip 2020 desagrada parte do público
Vida & Arte

Entenda por que a homenagem a Elizabeth Bishop pela Flip 2020 desagrada parte do público

Escritora Juliana Diniz analisa a polêmica que cerca a indicação da norte-americana Elizabeth Bishop como autora homenageada da Flip 2020
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A escritora Elizabeth Bishop é a homenageada da Flip 2020 (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação A escritora Elizabeth Bishop é a homenageada da Flip 2020

A escolha do homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty nunca é isenta de riscos. Já nos preparativos para a próxima edição, a organização divulgou a escritora que será festejada em 2020. Investiu-se na novidade, e pela primeira vez a festa celebra um nome estrangeiro, a norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979). Ganhadora de prêmios literários de prestígio, Bishop é mais conhecida por sua obra poética. No Brasil, o leitor pode encontrar uma seleção seus poemas na coletânea organizada por Paulo Henriques Britto e publicada pela Companhia das Letras.

Nascida nos Estados Unidos, em 1911, Elizabeth Bishop viveu seus anos de juventude no Canadá, aportando no Brasil em 1951 para uma passagem breve. Graças a uma paixão, acabou permanecendo no País por mais de quinze anos, tornando-se uma observadora atenta não só dos costumes nacionais, mas também dos sons e humores das terras brasileiras, transmutados em literatura através de seus versos.

A relação de afetividade que Bishop construiu com o País foi permeada por encantamentos e críticas ácidas. No livro Prosa, que reúne artigos, resenhas, cartas e contos da escritora, o leitor encontrará algumas das suas mais polêmicas impressões sobre o Brasil, sobretudo as opiniões acerca do cenário político brasileiro no desenrolar do golpe conduzido pelos militares em 1964. Em carta a Robert Lowell, Bishop definiu o golpe como "revolução rápida e bonita", insistindo que a suspensão de direitos e a cassação de boa parte do Congresso tinham que ser feitas "por mais sinistro que pareça".

Ao contrário do que se pode imaginar, as declarações de Bishop sobre a política brasileira não se limitavam ao espaço de sua correspondência pessoal. No artigo Na ferrovia chamada Encantado, publicado no ano de 1965 na The New York Times Magazine, Elizabeth Bishop tece elogios a Castelo Branco por sua "dignidade impecável". Por essas e outras declarações, a indicação do nome da escritora como homenageada não foi bem recebida no meio literário após o anúncio da curadora da Flip, Fernanda Diamant.

Para Regina Przybycien, especialista na obra da poetisa, a homenagem foi inoportuna em razão do cenário de intensa polarização. A autora do livro Feijão Preto e Diamantes - o Brasil na obra de Elizabeth Bishop chama atenção para o fato de que o olhar de Bishop era limitado pelo seu lugar social: próxima à elite carioca, a escritora convivia socialmente com um círculo de lacerdistas que participaram ativamente nas preparações para o golpe.

A indicação do nome da escritora levou a um inevitável debate sobre as políticas culturais. Em um contexto de hostilidade às artes, o simbolismo da indicação do escritor homenageado tem o potencial de transformar o espaço de debates da Flip em uma arena muito rica para a reflexão sobre o Brasil hoje. Foi o que aconteceu nos anos anteriores graças à indicação de nomes como Lima Barreto e Euclides da Cunha. A celebração de uma estrangeira simpática à ditadura foi lida como uma chance desperdiçada.

É possível, contudo, enxergar na sombra da biografia da homenageada um espaço interessante para a reflexão. Elizabeth Bishop produziu uma obra poética robusta e uma prosa articulada, que dá margem a muitas interpretações sutis. Sua voz é a de uma mulher elitizada, seu olhar sobre o Brasil, estrangeiro. Apesar de inoportuna, a indicação de seu nome pode ser um bom caminho para expor os desafios e as complexidades de ser artista em tempos de crise social. Bishop é a prova de que toda arte é historicamente situada e de que a política é inescapável.

Juliana Diniz é escritora e professora de Direito da UFC

Capa do livro Uma arte: as cartas de Elizabeth Bishop
Capa do livro Uma arte: as cartas de Elizabeth Bishop

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Uma arte: as cartas de Elizabeth Bishop

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