"As pessoas não morrem, ficam encantadas", proferiu o escritor mineiro João Guimarães Rosa em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras em novembro de 1967. "Mais eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita: O mundo é mágico". Nos feitiços subterrâneos das vidas, severinas e de viés, os saberes dos encantados correm velozes feito sangue nas veias e atravessam gerações. Os conhecimentos populares tradicionais e do patrimônio imaterial do Estado firmam ponto nos passos e vozes dos Mestres e Mestras da Cultura do Ceará. De amanhã, 4, até sábado, 7, o município de Sobral recebe o XIII Encontro Mestres do Mundo, a reunião dos Tesouros Vivos da Cultura.
Reconhecidos pelas leis 13.351/2003 e 13.842/2006, que instituem o registro dos Tesouros Vivos da Cultura do Estado por meio de seleção pública, os Mestres da Cultura são atualmente representados por 78 referências em suas artes, saberes e ofícios, assim como 13 grupos e três coletividades. São artesãos, boiadeiros, pajés, bonequeiros, mateiros — toda sorte de encantados que costuram o passado e o presente das tradições do povo cearense com a agulha do tempo e a linha da reinvenção. No XIII Encontro Mestres do Mundo, os 11 novos Mestres e Mestras da Cultura, dois grupos e uma coletividade eleitos em 2019 receberão o Título de Notório Saber da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult) em parceria com Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Raimunda Rodrigues Teixeira, de 73 anos, foi uma das novas Mestras da Cultura eleitas. Líder do povo Tapeba de Caucaia, foi a primeira mulher a ocupar o papel de pajé numa etnia indígena no Ceará. "Eu tenho amor pelo meu povo, tenho consideração pelo meu povo. Como pajé, dentro da luta, estou dando oportunidades para outras indígenas", garante a Mestra. "Para ser pajé a pessoa tem que ser rezadeira, trabalhar com as plantas medicinas, tem que trabalhar com a força da espiritualidade", explica. "O povo Tapeba se mantém firme e forte na luta, na tradição dos artesanatos, da pesca, da festa da Carnaúba. Nossa cultura nunca vai morrer. Não deixamos de fazer nossas festas e danças e passamos, dentro das escolas, as histórias dos antepassados para que os jovens saibam dos nossos costumes", conclui Dona Raimunda Tapeba.
Entre os grupos eleitos em 2019, o Maracatu Rei de Paus destaca-se como o maracatu em atividades contínuas há mais tempo na Capital: foi fundado 65 anos atrás pelos irmãos Antônio Barbosa, José Bernardino Barbosa e Geraldo Barbosa. Com mais de 300 participantes, a agremiação já recebeu quase 30 títulos de campeã do carnaval de rua de Fortaleza. "O Rei de Paus é referência. Em alguns momentos, só existiam dois maracatus militando na cidade de Fortaleza, o antigo Leão Coroado e o Rei de Paus. Para nós, ser uma referência diplomada é muito importante. Foi através da nossa resistência, na década de 1970, que outros maracatus surgiram. Essa diplomação vem chancelar um grupo que realmente tem experiência e serviço prestado à Cidade", pondera Francisco José Barbosa da Silva, atual presidente. Filho de Geraldo, Francisco assumiu o posto em 2007 para dar continuidade ao trabalho da família. Amanhã, ao lado do Maracatu Nação Tremembé de Aracatiaçu, o Rei de Paus realiza a coroação da rainha e do rei a partir das 19 horas. "Vamos rememorar as macumbas, luandas, afrobrasilidades dos carnavais antigos na apresentação em Sobral", adianta.
Outro destaque na programação de abertura do XIII Encontro Mestres do Mundo é o grupo pernambucano Bongar, que se apresenta a partir das 22h20min do dia 4. Criado há 18 anos, o Bongar pertence à comunidade tradicional de terreiro de matriz africana Xambá do Quilombo do Portão do Gelo, em Olinda. O propósito do Bongar, explica o vocalista Guitinho da Xambá, é levar aos palcos a tradicional festa do Coco da Xambá: "Dentro desse universo de cocos, a Xambá se diferencia por ser um coco que vem do terreiro de candomblé. Tem a particularidade da forma de tocar o principal instrumento que é a alfaia, o tambor", elucida. "A Xambá herdou elementos das tradições banto e yorubana e a música é um expoente que revela nossa tradição. Foi o coco que tornou nossa história conhecida, porque a literatura trata o povo Xambá como um povo extinto — mas a gente está aqui há muito tempo", complementa Guitinho. Com seis discos lançados, a Bongar apresentará em Sobral a força das batidas dos terreiros. "Estar no encontro dos Mestres da Cultura é um grande orgulho. Já tocamos em várias partes do mundo, mas esse era um festival que a gente sempre queria fazer. Agora estamos indo com todo carinho e apreço, é nesse ambiente que nos sentimos confortáveis porque a gente se reconhece no chão, nas pessoas".
A programação completa do XIII Encontro Mestres Mundo envolve apresentações artísticas, pinturas corporais indígenas, feiras de artesanato, gastronomia local e espaços solidários e inclusivos.
XIII Encontro Mestres do Mundo
Quando: de quarta, 4, a domingo, 7. Das 9h à meia noite
Onde: Sobral, Ceará
Programação gratuita e aberta ao público
Informações: mestresdomundo.org.br
PROGRAMAÇÃO
Espaços e programação permanente - Praça São João
Sob a flor branca do Mandacaru multiplicando força solidária
Espaço dos Encantados - Local de valorização dos saberes e fazeres dos Mestres que se foram
Feira de Artesanato - Feira de saberes e fazeres artesanais
Feira de Gastronomia Tradicional - Comunidade e Culinária tradicional local
Pintura corporal com o povo indígena Wajãpi (AP)
Espaços Solidários e Inclusivos - economia da cultura e agricultura familiar, comunidades tradicionais do Ceará
Quarta-feira, 4
20h30min - Solenidade de abertura
21h20min - Fuocco di strada (México)
Quinta-feira, 5
9h às 12 horas - Vivência Comunitária - Carroça de Mamulengos (Juazeiro do Norte, CE), Vila União.
20h - Dança do toré povos indígenas do Ceará
Sexta-feira, 6
14h às 18 horas - III Seminário Interdisciplinar de Patrimônio Imaterial com o tema Patrimônio: territórios ameaçados, riscos às comunidades tradicionais e originárias
22h10min - Boi de Maracanã, Sotaque de Matraca (São Luís MA)
Sábado, 7
9h às 11 horas - Caminhada Nativa: no coração do boi de Aracatiaçu tem cabaçais e sons de Rosinha - no terreiro do Mestre do Boi Coração e do Boi Lagoa (Aracatiaçu/Sobral, CE)
22h10min - Banda Cabaçal Irmãos Aniceto (Crato, CE)
22h40min - Dona Onete (Belém, PA)
Tesouros Vivos da Cultura 2019
Mestre Cabaceiro Siará
Adrião Sisnando de Araújo, Juazeiro do Norte - Cabaceiro
Mestre Aécio de Zaira
Aécio Rodrigues de Oliveira, Crato - Luthieria
Mestre Antônio
Antônio Ferreira Evangelista, Juazeiro do Norte - Reisado
Mestre Expedito Caboco
Expedito Antonio do Nascimento, Juazeiro do Norte - Banda Cabaçal
Mestre Chico Belo
Francisco Alves de Freitas, Caridade - Artesanato em Couro
Mestre João Pedro do Juazeiro
João Pedro de Carvalho Neto, Fortaleza - Xilogravura e Literatura de Cordel
Mestra Pajé Dona Raimunda Tapeba
Raimunda Rodrigues Teixeira, Caucaia - Cultura Indígena do Povo Tapeba
Mestra Maria de Tiê
Maria Josefa da Conceição, Porteiras - Comunidade Quilombola dos Souza - Dança do Coco e Maneiro Pau
Mestre Cacique Sotero
José Maria Pereira dos Santos, Aratuba - Cultura Indígena do Povo Kanindé
Mestra Dona Edite do Coco
Edite Dias de Oliveira Silva, Crato - Dança do Coco
Mestre Gil Chagas / Gil D'Aurora
Francisco Gildamir de Sousa Chagas, Aurora - Escultor e Luthier
Grupos:
Reisado Mirim Santo Expedito, Juazeiro do Norte
Maracatu Rei de Paus, Fortaleza
Coletividade:
Associação União dos Moradores do Jatobá, Chaval - Mandiocultura / Farinhada
Saberes e fazeres de artes e ofícios
O POVO: Neste ano, o número de Mestres e Mestras da Cultura do Estado foi ampliado. Como ocorreu esse processo?
Fabiano Piúba: A política dos Mestres da Cultura é pioneira no reconhecimento dos saberes e fazeres, das artes e ofícios, dos Mestres e Mestras da Cultura popular e tradicional do Ceará. O Estado tem um pouco essa marca de vanguarda, de pioneirismo. No primeiro momento da lei, havia um limite de 60 Metres e a cada ano, a partir de 2004, foram selecionados 12 até atingir a meta em cinco anos. Depois disso, só havia renovação quando por vacância, em função do falecimento de um Mestre ou de uma Mestra. Na campanha de 2014 — e também como uma meta específica do Plano Estadual de Cultura — ampliou-se para 80. Agora em Sobral, os últimos Mestres nessa cota de 80 serão certificados e titulados. A gente agora ampliará para o número de 100 Mestres da Cultura, em que serão selecionados 10 novos Mestres em 2020 e 10 em 2021. Mas, muito maior que o número, é a questão da qualificação da transmissão dos saberes e fazeres.
O POVO: A escolha dos Mestres é plural. Qual é a premissa dessa diversidade?
Piúba: Cultura é diversidade — e essa diversidade é composta de identidades. No caso dos Mestres, a gente sabe que tem uma relação direta com o saber ancestral, tradicional, popular, mas que é também uma expressão contemporânea do aqui e agora. São artistas, são mestres do seu próprio tempo que estão reinventado e ressignificando essas tradições também. São artesãos do couro, da madeira, do metal, do barro, são Mestres vinculados ao corpo, à música, às artes cênicas. Temos reisado, pastoril, bumba meu boi, manifestações e expressões culturais que valorizam nossa diversidade.
O POVO: Qual é a importância do reconhecimento dos saberes populares como conhecimento?
Piúba: Eu gosto de pensar a cultura como um saber fazer comum, portanto solidário. Quando eu busco esse conceito, trago aquela história do Antônio Machado, poeta espanhol, que diz ter aprendido com um camponês analfabeto que "tudo que sabemos, sabemos entre todos e para todos". Toda casa de um Mestre e Mestra da Cultura é uma escola e museu ao mesmo tempo. É um lugar de educação e de memória, de invenção, de criação, de construção desses saberes, dessas artes, desses ofícios que estão sendo ali ressignificados o tempo todo. Essa relação entre o saber tido como erudito e outro popular bebe da fonte do outro. Quando a Uece reconhece e titula os Mestres da Cultura como notório saber, não é só um ganho para o Mestre: é um ganho mútuo, recíproco, porque ela dialoga com esses saberes e fazeres. Nesse contexto até internacional de ondas conservadoras e reacionárias, eu creio muito que são esses saberes mais orgânicos, que têm uma relação mais viva e mais sagrada com a natureza, por exemplo, esses saberes que têm cosmologia que vão nos apontar as alternativas. Esse encontro dos Mestres do Mundo é portanto também um encontro de saberes, de produção do conhecimento.