OP - O prefácio de Rubem Alves conta que Benedito Bacurau surgiu de uma cantiga de ninar que sua mãe cantava para você. De que modo essa série se conecta com sua experiência pessoal e sua obra, atravessada pela infância?
Flávio - As fontes das lembranças estão em todos nós, com suas impressões e caráter psicológico guardados nos domínios da memória. Percebi o Benedito Bacurau batendo asas dentro de mim desde que me tornei pai duas vezes, em 1999 e em 2001. Ele surgiu como algo espontâneo, como uma respiração, e me instigou a visitar as regiões imaginárias dessa lembrança feliz e a contar o que encontrei durante a viagem. A suavidade da leitura do prefácio, feita pela Marta Aurélia, antecipa a leveza das palavras, dos sons, dos traços e das cores que movimentam os episódios.
OP - Benedito Bacurau se apresenta como "uma obra infantil para adultos". Que importância tem para você esse movimento de resgatar esse espírito de infância, que escapa à lógica do cotidiano, levando essa liberdade infantil às pessoas de diferentes idades?
Flávio Paiva - A Série Benedito Bacurau mistura acontecimentos e ações, observações e sentimentos, colhidos no que o cotidiano tem de mais sublime, para oferecer como enunciados a serem completados por quem se dispuser a apreciá-la. A literatura recitada com a poética vocal e a engenhosidade musical de Antônio Nóbrega abraça fraternalmente as aquarelas abstratas e líricas de Estrigas, para que o pássaro que não nasceu de um ovo, como diz Rubem Alves, faça o que nenhum outro bacurau faz. As animações sutilmente trabalhadas pelo Lucas Santiago e pelo Gabriel Goersch, com a produção amorosa da Cláudia Rodrigues, mexem com a essência desse personagem que não existe.
OP - Quando você lançou Benedito Bacurau em livro e CD, em 2005, já tinha interesse de transformá-lo em um projeto audiovisual em algum momento? Como se deu esse processo?
Flávio - A minha intenção primeira foi a de fazer um audiolivro, mas naquele momento esse formato ainda era muito incipiente no Brasil e acabamos publicando um livro-CD. E ficou nesse suporte até este ano, quando a edição foi descontinuada por parte da editora. Daí veio a ideia de fazer a série em animação para ser disponibilizada em vídeos no YouTube. Logo em seguida lançaremos o audiolivro nas plataformas de streaming.
OP - Como obra que brinca com palavra e música, de que modo Benedito Bacurau busca falar dessa força que tem sobre nós as melodias de infância, capazes de marcar a vida pra sempre?
Flávio - Para mim, a vida sempre teve trilha sonora. Não é à toa que tenho musicado todos os momentos do meu viver. O que a minha mãe cantava para mim vinha do instante, pelo improviso do ninar, e dos lugares mais distantes, pela recordação do que cantaram para ela. O caso do Benedito Bacurau exemplifica bem essa simbiose de linguagem e sua transversalidade de tempo e espaço. O que ouvi em forma de versos na voz aconchegante da minha mãe, originalmente era um grito de palhaço, com acompanhamento de crianças pelas ruas: "E o Benedito Bacurau?", perguntava em voz alta o bufão, "Tá no oco do pau", respondiam bradando as crianças, que com essa participação ganhavam o direito de entrar de graça no circo.
OP - Como você percebe a importância dessas referências musicais em sua obra, desde o pássaro Bacurau que canta no oco do pau, o canto de ninar da sua mãe e a outros tantos sons? Essa musicalidade está conectada com a ideia de infância para você?
Flávio - Sim, a música é um campo fantástico de exploração imaginária, por ser o resultado da relação entre sons e pausas que nos tocam desde a nossa experiência intrauterina. A criança, como ser espontaneamente vibrante, é musical e brinca facilmente com música. Quando recorro ao Benedito Bacurau para fazer alguma coisa que possa ajudar a despertar um mundo embrutecido, é porque acredito na poética da infância como estímulo à consciência do adulto para que reconheça a menina ou o menino presente em sua vida e que merece ser ouvido em seus sonhos de amar o mundo.
OP - Quase 15 anos passados desde que a narrativa de Benedito Bacurau chegou aos livros pela primeira vez, como você espera que esse "pássaro-metáfora" volte a se aninhar no imaginário do público que acompanhará a série?
Flávio - O Benedito Bacurau é um protagonista da aventura de viver, cuja força está na sonoridade pulsante da cultura da infância. Como não existem ex-crianças, todo adulto tem um bacurau dentro de si, mesmo que adormecido. Daí o recurso dessa metáfora como busca de dar sentido humano e existencial às coisas mais simples. Isso é urgente. Se, nesses tempos sombrios que estamos atravessando, temos dificuldade de chamar a coruja, que, na filosofia, é o símbolo da sabedoria do adulto, para refletir sobre o que estamos fazendo uns com os outros e com o Planeta, tratei de apelar para a corujinha Bacurau, como símbolo da imaginação infantil, com o intuito de contribuir para o nosso despertar a partir do nosso mundo interior, onde a infância tem lugar especial em todas as pessoas.