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Talles Azigon destacou-se em 2019 ao defender uma literatura insurgente e descentralizada
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Talles Azigon destacou-se em 2019 ao defender uma literatura insurgente e descentralizada

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Talles iniciou sua carreira em blogs e hoje faz parte da editoria Substânsia.  (Foto: FÁBIO LIMA/O POVO)
Foto: FÁBIO LIMA/O POVO Talles iniciou sua carreira em blogs e hoje faz parte da editoria Substânsia.

Talles Azigon é poeta, produtor cultural, editor, mediador de leitura, contador de histórias — mas, antes de todas essas vivências, é leitor. "Nasci e comecei a ler. Simples, né? Mas é isso que nos ensina Paulo Freire". Criado na Maraponga dos anos 1980, "uma comunidade escondida que servia como bairro de veraneio para burguesia fortalezense", aprendeu a ler o mundo com olhos atentos aos tamarindos pesados nas árvores, às casas enfeitadas de samambaias. Segurou, com as próprias mãos, histórias de figuras mitológicas como o Chico Pitoroco — entreouvidas, muitas vezes, no bar de sua avó. Foi escutando música por lá que começou a gostar de poesia.

Eleito curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará de 2021 ao lado da escritora mineira Conceição Evaristo, Talles é dois, três, quatro... 20. A força do coletivo mora na boca do jovem habitante do Curió. Organizador da Livro Livre Curió Biblioteca Comunitária, acredita numa literatura desafiadora. Neste 2019, o nome de Talles correu cada praça, sarau, quebrada insurgente. E garantiu: literatura pode — e deve — ser feita por e para todas e todos.

O POVO: Qual a importância da mediação no processo de formação de leitores, principalmente de leitores de obras cearenses? Como foi sua experiência enquanto mediador ao longo de 2019?

Talles Azigon: Os ricos, os homens brancos, convencionaram que a leitura era do campo do supérfluo, que servia somente aquelas e aqueles que tinham o privilégio do ócio no mundo das coisas práticas, em que nós indígenas e negros fomos utilizados como motor, onde não precisaríamos de algo assim, que inclusive desviaria das funções que os homens brancos legaram para nós. Ou seja, não permitir o universo da leitura é uma das eficazes ferramentas de dominação. A escola me apresentou a biblioteca, a biblioteca me apresentou um universo que eu jamais imaginei que pudesse existir. A leitura é esta tecnologia que nos permite perceber que não somos apenas nós, que não existe apenas o bairro, que nossa história é interconectada à história do mundo e que esta pode influenciar naquela. A leitura é um poder de existir. Mediar leituras é como se de repente você descobrisse a fórmula da vida eterna, a verdadeira, e fosse para o meio da feira livre gritar, anunciando e tentando vender aquele produto maravilhoso. Quanto mais alto você gritar, quanto melhor forem os bordões, sua simpatia, seu carisma e sua percepção do público, mais fácil você vai conseguir vender essa fórmula para as pessoas. Ou seja, vai permitir que elas possuam o poder de existir. Em 2019 continuei fazendo aquilo que faço profissionalmente há pelo menos sete anos, agora cada vez mais, com um dado importante: "vendendo" esta fórmula de mágica da vida para pessoas às quais são negados os direitos de viver, as pessoas que inclusive são exterminadas todos os dias, as pessoas da periferia. Com o movimento de saraus e com as bibliotecas comunitárias, posso afirmar com felicidade que fui uma das pessoas que fizeram o Ceará enxergar que a mediação de leitura é uma possibilidade de vida.

OP: Em 2018, o cearense Mailson Furtado venceu o Jabuti de livro do ano por À cidade. Como você avalia a reverberação desse prêmio no cenário local?

Talles: O Mailson nos deu um presente ao ganhar o Jabuti. Um duplo presente: primeiro, ele foi reflexo de uma tendência, de que é possível fazer uma literatura sem necessariamente estar vinculado às grandes editoras; e que fazemos poesia e literatura de qualidade há muito tempo. Quando um de nós se fortalece, nos fortalecemos todos. (Continua na página 3)

FORTALEZA, CE, BRASIL, 18-12-2019: Talles Azigon, proprietário de biblioteca. Exposição de literatura. (Foto: Fábio Lima/O POVO)
FORTALEZA, CE, BRASIL, 18-12-2019: Talles Azigon, proprietário de biblioteca. Exposição de literatura. (Foto: Fábio Lima/O POVO)

Onde pulsa a vida

OP: Os clubes de leitura se multiplicam pela Cidade. Como você avalia esse movimento?

Talles: Certa vez, comentei com uma amiga que os clubes de leitura estão cada vez mais fortes e aqui em Fortaleza posso citar vários. Conseguimos levar alguns para a Bienal do Livro deste ano, como o Clube de Leitura da Sublime, o Ponto Itinerante de Leitura, o Pic-Nic Literário, o Clube de Leitura da Lamarca — para lembrar só alguns — porque as pessoas estão muito adoecidas e as histórias, a poesia, o encontro, o diálogo, o circulo (formato da maioria desses clubes) têm poder de cura. A internet é incrível, mas ela tem esse lado - quando não bem utilizada e acordada com a sociedade - de afastar as pessoas uma das outras. Ora, a gente só consegue existir se for em comunidade e os clubes de leitura no Ceará conseguem construir uma verdadeira comunidade de leitoras e leitores. Eles são incríveis, são poderosos, são curativos, são divertidos, são uma delicinha. Eu recomendo a todas as pessoas a irem em um clube de leitura, vá a primeira vez sem nem precisar, obrigatoriamente, ler o livro do encontro. É uma experiência que mostra, na prática, que a melhor conexão é a de pessoas.

OP: Qual é o papel de pequenas editoras, selos independentes e autopublicações na consolidação dos autores cearenses? Em 2019, quais iniciativas se destacaram neste caráter?

Talles: Mesmo com nomes maravilhosos nas grandes editoras, como Tércia Montenegro, Socorro Acioli, Ana Miranda, Júlio Lira, a literatura cearense continua existindo em sua maioria através das editoras independentes e das autopublicações. Em 2019, o grande destaque foi a Editora Aliás, que não simplesmente publica livros — algo bem difícil —, mas publica livros e promove encontros, oficinas, eventos. Uma editora independente faz o dever de casa e mantém o sistema literário saudável. Além da Aliás, da Substânsia, da LuAzul, da Nadifúndio, da Karuá, da Radiadora, uma tendência de 2019 forte foram as Zines, as publicações artesanais, cartoneiras, que têm tiragens ainda menores que as das editoras independentes. Muita gente botou a mão na massa e fez, divulgou e vendeu seu próprio livro. Eu acho isso maravilhoso.

OP: Seu trabalho é forjado nas praças, nos encontros da juventude. Os saraus e slams compõem o universo literário do Estado?

Talles: Meu trabalho é forjado onde tem vida e a vida pulsa em todos esses locais que você citou: os saraus, os slams, as batalhas de Mcs, as rodas de leitura, os clubes de leitura, todos esses acontecimento que se propõem a reunir pessoas de maneira autônoma, sem empregar as hierarquias acadêmicas, fizeram mais pela literatura no Estado do Ceará nos últimos anos do que qualquer entidade, poder ou afim. Se as grandes editoras fossem mais responsáveis e as grandes livrarias se comportassem de modo a financiar e colaborar com esse tipo de evento, eu tenho certeza que melhoraríamos e muito na difusão do livro e da leitura. Os saraus e slams, que muitas vezes são tidos apenas como coisas de periferia, de pobre e preto, são uma solução sofisticadíssima — assim como são as bibliotecas comunitárias — para a crise do livro, da leitura e da literatura do nosso Estado.

OP: Livro Livre Curió, Biblioteca Comunitária da Okupação, Biblioteca Viva Barroso, Casa Camboa, Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias... Múltiplas iniciativas de bibliotecas comunitárias crescem em Fortaleza. Qual é a importância desses espaços?

Talles: As bibliotecas comunitárias oferecem a oportunidade de acesso aos livros a pessoas que não teriam condição de comprá-los, mas não é só isso. Uma biblioteca realmente comunitária, como essas que você citou, acaba tornando-se um centro comunitário, cultural, científico e social do bairro onde está localizada. Nela acabam circulando informações, ciência, filosofia, arte, história... São tão ricas, tão impactantes, que deveriam ser adotadas por toda a sociedade civil. Temos que cuidar dessas bibliotecas e fazer novas nascerem, uma das saídas para o contexto crítico que vivemos passa por dentro dessas bibliotecas comunitárias.

OP: A Bienal Internacional do Livro do Ceará, maior evento literário do Estado, ocorreu neste ano. Narrativas indígenas, LGBTQ , feministas, juvenis e periféricas destacaram-se na programação. Como você avalia esta edição do evento? Quais as forças e fragilidades da Bienal do Livro?

Talles: A maior força da Bienal do Livro do Ceará somos nós, sociedade civil, que influenciamos os rumos que a Bienal deve ter. Se essa Bienal foi a mais diversa, foi mérito nosso e inteligência do Secretário Fabiano Piúba e da Coordenadora Goreth Albuquerque, que perceberam que não é mais possível relacionar eventos literários a branquitude e ao elitismo. Eu acho que a Bienal do Livro é o principal evento cultural de grande porte do Ceará, mas que ainda precisa de um caminho melhor em sua gestão e produção, como facilitar os pagamentos das pessoas que participam dela. Esse tipo de reflexão que trago tem de ser visto como crítica construtiva e não como ataque ou ofensa. No Brasil, quando alguém tece esses comentários, é tomado logo por ataque. Mesmo assim, esta foi a Bienal do Livro mais diversa da história das Bienais do Livro do Brasil, isso por si só é um grande mérito. Agora queremos manter esse título e junto a ele ser a Bienal mais bem organizada estruturalmente, o que sempre é difícil para um evento de tamanho porte.

OP: Você e a escritora mineira Conceição Evaristo são os próximos curadores da Bienal do Livro do Ceará. O que o público pode esperar do evento? Qual será o foco da curadoria?

Talles: Soube que um jornalista branco e famoso daqui do Ceará afirmou, quando fui anunciado para curadoria da Bienal, que era muito cedo. Realmente, devo ser o curador mais jovem da história da Bienal. Entretanto, com um histórico de ações coletivas tão grande — acredito que o curador da Bienal não é o Talles: é o movimento de saraus, as bibliotecas comunitárias, as editoras independentes, o Templo da Poesia, a periferia, todas essas coisas das quais faço parte e fazem parte de mim, todas essas histórias e vivências coletivas. Quando Conceição Evaristo almoçou aqui em casa, nós conversamos principalmente sobre essas vivências coletivas, talvez essa seja uma das pistas para a próxima Bienal.

 

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