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"Já conquistei o Brasil e, agora, o mundo!"
Vida & Arte

"Já conquistei o Brasil e, agora, o mundo!"

João Besouro está à frente da comédia "O Auto do Cumpade Cido", que retorna para duas apresentações no Via Sul. João Netto, criador do personagem, discorreu em entrevista ao O POVO sobre sua trajetória, que inicia pelo teatro, segue para o humor e se solidifica na fé
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João Besouro: personagem de João Netto foi criado para ser protagonista de "O Auto do Cumpade Cido" (Foto: 22 23:02:24)
Foto: 22 23:02:24 João Besouro: personagem de João Netto foi criado para ser protagonista de "O Auto do Cumpade Cido"

João Netto é Zé Modesto, mas retorna ao João quando precisa ser Besouro. Ambos matutos, diga-se de passagem, porém com uma diferença: um é urbano (de Ray Ban e cabelo lambido) e o outro, do meio do mato. O autor deste e de outros personagens mais, por sua vez, reside no mesmo cearense que, nascido na cidade de Mauriti, ganhou o mundo aos 18 com a missão de fazer o público rir, quer seja nos palcos das pizzarias, quer seja ao lado de outros bambas do humor, através do mestre e conterrâneo Chico Anysio.

Filho de Seu Oldemar, 92, e de Dona Maria Geni, 95, pai de Flora e Samuel, avô de Maria Flor e Ravi, João Netto é múltiplo: ator (com a carreira iniciada no Recife), mímico, humorista e, de 2003 para cá, recebeu – sem querer - um chamado de Deus e converteu-se à Igreja Batista. Casado e atualmente residindo nos Estados Unidos, a carreira internacional tem sido seu foco principal, tendo na comédia "O Auto do Cumpade Cido" sua grande carta na manga. Em entrevista ao O POVO, João Netto discorreu sobre trajetória, o humor no Ceará e projetou o que espera para 2020.

O POVO - O espetáculo encontra-se em cartaz desde 2007 e teve um modo todo especial de concepção: é escrito e dirigido por você, mas também tem a ver com a sua conversão. Como surgiu, então, "O Auto do Cumpade Cido" na tua vida?

João Netto – Bom... Essa comédia, ela tem uma profundidade muito grande. Porque ela não é uma coisa natural: ela é uma comédia sobrenatural. Como assim, João Netto? Eu sou cristão, crente, evangélico, me converti na Igreja Batista, mas me tornei um crente pentecostal, daqueles bem de fogo, que eu tinha preconceito, que eu achava estranho, que grita, que sapateia, que fala em línguas... E eu vivo essa realidade hoje. Então, assim... Depois de 42 anos fazendo muita loucura, Deus me pegou porque Ele tem poder – e isso foi em 2003. Então, como assim: você ser um artista que fez todo tipo de texto, inclusive com muito palavrão e tal, e aí Deus lhe converte? Então é por isso que eu tô falando: passa por um outro nível, que é um nível da fé, um nível das pessoas entenderem isso... Em 2003, Deus me converteu. Eu não queria ser evangélico, mas Deus me converteu, Ele me quebrou e aí aconteceu uma situação na minha vida que foi muito difícil, eu entrei em depressão e procurei ajuda em todo tipo de lugar e não consegui, aí acabei indo pra igreja dos crentes. Aí lá eu encontrei Jesus, literalmente. E Deus me mudou. Em 2005, fui pra uma oração lá na Pacatuba e eu não sabia dessas coisas, não sabia que Deus falava na Terra – eu achava que Deus estava lá e a gente aqui e tava tudo bem. Aí uma mulher olhou pra mim e disse: Deus vai lhe dar uma peça de teatro. Eu não sei quem você é, mas Deus tá me dizendo. E eu: “Valha, como assim?! E Deus é assim? E fala assim?” E eu nem queria porque eu era já o Zé Modesto, já tinha passado pela Escolinha, já tinha nome, eu já ganhava dinheiro fazendo show sozinho, eu não gosto de trabalhar mais em grupo porque dá problema... Amém, né! (risos) Não custa escutar... Dois anos depois, em 2007, o Antônio Fernandes (Skolástica) se converteu naquele momento e disse que não queria mais vestir roupa de mulher, queria fazer outra coisa, queria fazer uma comédia light, aí eu disse: “Pois vamo fazer uma comédia em que a gente possa fazer um fundo cristão e que a gente não fale palavrão?” Aí ele começou comigo. Chegamos a fazer juntos umas cinco folhas, aí ele teve um distúrbio bipolar, foi internado e disse que não queria mais fazer e eu continuei... E como essa peça foi uma promessa de Deus, eu continuei. Chamei o Wladson Sidney, terminei (de escrever) a peça, e ela sempre foi um grande sucesso! Todas as vezes que Deus me motiva a voltar com ela, ela é casa cheia, é bilheteria cheia. Então, ela não é uma peça normal. Eu acho que quem escreveu foi a inspiração divina. Eu não seria capaz de escrever um texto tão bom como esse! Se eu parar pra reconhecer, eu tenho que dar esse crédito pra Jesus! É uma conversa muito doida, que eu nunca teria conversa, mas é uma realidade muito viva, muito presente, eu ter que dizer isso. Eu não teria a capacidade de escrever e amarrar tão bem o texto aonde eu faço as pessoas morrerem de rir, sem nenhuma religiosidade, sem ter nada que ofenda ninguém e que eu consigo pregar a palavra, que é a Bíblia, de uma maneira tão engraçada, nordestina. Traduzir textos da Bíblia, aplicar trechos dela de uma maneira muito engraçada e isso passando por várias situações. O resultado é uma comédia para a família, que pode ser assistida por crianças... As pessoas, logo no começo, falavam: “Ah, essa comédia é muito boa pra minha mãe! Minha mãe é muito religiosa... Ah, pro meu pai... É bom, que não tem palavrão!” E começaram a vir muitos velhos e velhas para a peça.

OP – Foi daí que nasceu o João Besouro ou já existia esse personagem?

João Netto – Surgiu aí, sim. O Zé Modesto já era o personagem do show solo, e o João Besouro nasceu dentro dessa comédia. Em 2009, eu fui convidado a participar do (quadro) “Quem chega lá”, do "Domingão do Faustão", e uma coisa me motivou a ir. E eu fui. Ou seja, eu propaguei o João Besouro. Quando eu voltei, o teatro aqui superlotou! Eu me lembro que, em 2010, 2011, eu fiz quatro semanas no Via Sul e foram lotadas as quatro semanas! Então essa comédia tem um diferencial. Primeiro, que ela não é de minha autoria exatamente – se for no reino normal, é – mas é uma comédia que tem uma mensagem direta, ela tem passagens centrais da Bíblia onde ela prega o Evangelho... Já teve gente que se converteu, assistiu e disse: “Cara, eu quero me converter”. Então, assim... A gente nunca sabe a necessidade das pessoas, de ouvir uma palavra. O que é que tem muito hoje? Coaching, pensamento positivo, foco, não desista... E por que não também o próprio Deus, o próprio poder maior?

OP – Me resume um pouco o que seja o espetáculo.

João Netto – O espetáculo é o João Besouro falando pra Seu Cido que tudo aquilo que Seu Cido acha que ele é – ele é rico, porém viúvo – mas ele é infeliz, ele é muquirana, ele é arrogante, ele é prepotente, ele é dono da razão, tudo é dele, tudo ele conseguiu com o poder dele... E aí o João Besouro fala: “O que é que adianta ter todas essas coisas e não ter a coisa mais importante?” Aí ele questiona: “E o que é a coisa mais importante? É a salvação da sua alma”.

OP – A ligação com "O Auto da Compadecida" (de Ariano Suassuna) é só pelo nome?

João Netto – É só uma alusão ao nome, porém existe, de certa forma... Por exemplo, a inspiração do personagem foi feita pra lembrar o João Grilo, o nome foi feito pra lembrar "O Auto da Compadecida", toda a arte é baseada neles, porém o texto é completamente diferente. Não é sátira, não é plágio, não é uma versão, é uma coisa completamente diferente. Aonde é que eu entro com uma das passagens que lá fala e eu falo aqui? É que lá tem a interseção de Maria na hora da salvação. Os católicos creem que Maria intercede na hora da salvação; o crente não crê nisso. O crente crê que somente Jesus é suficiente pra salvar. Então é essa a verdade bíblica que eu mostro. Mas sem ‘evangeliquês’, sem religiosidade... Você pode assistir à peça por assistir, a mensagem pode passar batido na sua mente e você também não vai se sentir incomodado, mas muita gente entende tanto o lado natural, quanto o lado espiritual.

OP – Começou com o Wladson Sidney e agora tem o Luís Costa...

João Netto – Ainda é o Wladson Sidney. Só não é agora porque o Wladson vai para os Estados Unidos. Como eu tô morando em Los Angeles e vim pro Brasil pra passar uns três, quatro meses e já vou embora no final do mês de janeiro, eu só tive essas datas. Chamei o Wladson pra fazer, só que ele vai estar na Disney... O Luís, na primeira semana, já sabia o texto completo! Ele já viu umas três vezes, leu o texto, assistiu o DVD, chegou aqui e já deu um baile! Hoje ele já consegue, não só o texto, como ele já tá bem desenrolado.

OP – Bom... O João Netto é da cidade de Mauriti.

João Netto – Sou. Eu já falo que eu sou de Mauriti e Juazeiro. Eu digo que sou do Cariri... Porque eu vivi em Mauriti de 0 a 9 anos, de 10 aos 18 foi em Juazeiro onde foi toda a minha adolescência e, de 18 pra agora com 58 anos, no mundo: morei em Recife, Olinda, São Paulo, Rio, etc.

OP – O que veio primeiro: o humorista, o ator, o mímico...?

João Netto – Primeiro veio o ator, em 1981, lá em Recife. Eu assisti uma comédia chamada "Guarani com Coca-Cola", entrei por acaso no teatro, me apaixonei, fiquei louco porque eu não conhecia teatro, tinha saído de Juazeiro do Norte com 18 anos e lá não tinha teatro na época. E, por força do destino, esse grupo era amigo de um amigo que eu dividia uma coisa um dia. E eles foram pra minha casa, ficaram bebendo na minha sala e eu os reconheci e, como todo bom cearense, já em meia hora eu já era amigo de todo mundo! E eles viram em mim que eu era um ator natural e me convidaram pra uma peça. Participei e fui premiado como Ator Revelação no Festival de Teatro de Pernambuco, em 1981. E não parei mais: dessa peça, eu fiz outra, aí descobri a mímica onde eu fui pra São Paulo e estudei com a Denise Stoklos por um ano no Sesc Pompeia... Então eu já adquiri a técnica da mímica com a linguagem do teatro, na prática, e depois fui fazendo pequenas oficinas. Foi quando eu tinha na mão esse trunfo, vim pro Ceará, em 1986 e aqui comecei a minha carreira.

OP – Em que momento surgiu o Zé Modesto?

João Netto – Foi logo quando surgiu o movimento do show de humor nos bares. Com o Paulo Diógenes, o Ciro Santos... Eles dois foram para o Tronco do Sapoti, eu admirei demais aquilo, achei muito bom. Tinha uma turma da Universidade Federal que fazia também umas comédias em bar, Fernando Piancó que era uma outra pegada, aí a Skolástica já fazia na boate, aí surgiu ali o Falcão e o Lailtinho no Pirata, a Rossicléa e a Meirinha, o Tom Cavalcante começou a fazer show no Chopin Bar... Aí eu comecei a fazer piada e mímica. Mas eu vi que era necessário, na época, um estereótipo, criar um personagem. Parece que, pra ser humorista no Ceará, tinha que ser uma coisa exagerada, estereotipada. Então eu falei: Cara, eu vou criar um personagem pra poder me encaixar melhor nisso aqui. Aí o Zé Modesto nasceu em 1992 e, logo que eu criei, foi um sucesso muito grande. O coronel Ronald me chamou pra TV Cidade onde eu fiz uma participação no programa "De Olho na Cidade" com o falecido Ênio Carlos e, em seguida, fui pra TV Jangadeiro e fiz "Zé Modesto Fumando Numa Quenga", que foi um sucesso. Era uma graça. Aí criei o "Zé Modesto 10 e ½", que era uma sátira ao programa do Jô Soares, ali no Pier 251 (Dom Luís) e, naquele ano de 1993, eu estourei aqui em Fortaleza. Aí me venho quem? O velho Chico... Eu encontrei o Chico Anysio e ele disse: “Cara, já me falam muito de você. Você é famoso!”. Eu disse: “Não, eu não... Mas me leve pra Escolinha!” (risos) Aí nisso ele me levou e eu fiquei o ano de 2004 até o final de 2005, que foi quando o Chico teve um problema na voz. Fiquei duas temporadas, ainda trabalhei com ele no "Chico Total", mas não mais como o Zé Modesto e sim com outros personagens, aí ele casou com a Zélia, foi pros Estados Unidos, teve um problema na corda vocal, saiu da Globo – saiu não, parou o programa, aí entrou a Marluce e ele foi pra geladeira...

OP – Como você definiria o Zé Modesto?

João Netto – Zé Modesto, ele é um matuto urbano. Ele é inteligente, ele é bem informado, ele não é preconceituoso, porém é macho com a resposta na ponta da língua, meio que ‘tolerância zero’, é primo de Lunga! E é diferente do João Besouro, que é um matuto do sítio, da província mesmo, do mato. Zé Modesto é mais do parque de diversão, já é da quermesse, já é o que visita a capital, já passeia, já pode dirigir uma rural, uma picape... Ele tem essa outra pegada.

OP – De lá pra cá, mudou muito o perfil do personagem?

João Netto – Mudou, mudou muito. A primeira foto do Zé Modesto, ele tinha bigode, um chapéu, uma capanga e uma jaqueta jeans. Ele nasceu, paralelo a eu fazer um show, dentro de um filme no BNB aqui no Passaré. Fui fazer um filme interno onde eu fazia um personagem grosso pra ser atendido por um caixa. Era como um caixa deve tratar um cliente. Esse era José Modesto da Silva. Aí, quando eu procurei um personagem, falei: “Cara, vou trazer aquele personagem do filme!” E aí veio os óculos Ray Ban, o cabelo lambido, eu usava muitos anéis, cordão de ouro... Hoje não tem mais nada.

OP – Mas essa “limpeza” também teve a ver com a tua conversão?

João Netto – Não. Às vezes eu fazia umas piadas e falava muitas coisas imorais. Imorais mesmo, de falar palavrão – coisa que eu não faria hoje. A conversão me ajudou muito nisso, mas me constrange hoje eu falar palavrão porque eu entendo que uma menina de sete anos, seis anos, não precisa ouvir. Mas aí foi um lado bom porque, hoje em dia, meu show se tornou um show familiar, que pode ser feito em hotéis. Eu entro e faço um show pra toda a família e não falo nenhum palavrão. E eles adoram isso porque não constrange. E eu também gosto.

OP – Como você analisa, então, o humor que é feito hoje em dia no Ceará?

João Netto – Eu acho que pulverizou muito. Hoje nós temos os bons, os médios, os ruins, os péssimos e os que nem são. Atrapalhou muito na questão mercadológica, ajuda a criar emprego, a gerar divisa, a atrair turismo – apesar da falta de apoio constante – mas não morreu, não vai morrer porque o cearense, naturalmente, ele é gaiato. Mas falta uma autenticidade, falta profissionalismo de muitos, falta cuidado... E eu digo isso porque eu trabalhei na Rede Globo e ela consegue fazer programa ruim, mas é bem feito: é o cuidado com a luz, com o cenário, o figurino, a personagem, a maquiagem, sabe? Se o cara, ele não é humorista, mas se propõe a fazer humor, que ele, no mínimo, cuide da sua maquiagem. Então tem gente que, hoje, faz a cara da Raimundinha. A mesma cara de 30 anos atrás! Isso, infelizmente, atrapalhou o nosso mercado. Quando eu estava mais ativo, cheguei a fazer 42 shows no final do ano, na época do Natal, em empresas. Sabe quantos eu fiz agora? Um. Ontem, inclusive, pra Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS). O único show que eu fiz referente a Natal de uma empresa ou de uma instituição. Um show! Antigamente eu fazia 42... O que é que acontece hoje? Têm muitos artistas aí, humoristas ou pseudo-humoristas, fazendo shows por R$ 150, 200, 300 e, infelizmente, muitas empresas compram só a bagunça: só botar o cara no palco e fazer o cara dançar, o casal se requebrar... E acha que é humor. Infelizmente é isso.

OP – A mudança para Los Angeles foi a trabalho?

João Netto – Eu casei há dois anos, a minha esposa é atriz. Ela tinha um desejo muito grande de fazer algo fora do Brasil, já que ela sempre fez coisas aqui, e eu tenho um desejo também de fazer cinema. Eu cheguei a fazer aqui dois roteiros, inclusive eu tenho um roteiro hoje pronto de "O Auto do Cumpade Cido", que tá muito legal e Deus me deu também essa inspiração, eu escrevi em 30 dias e esse roteiro já tá traduzido pro Inglês – adaptado pro Tennessee, como se fosse dos Estados Unidos – então eu perco o personagem, mas eu ganho como roteirista. E eu acredito nesse sonho.

OP – Então esse será realmente seu grande projeto para 2020...

João Netto – Esse é o projeto: o projeto é Deus abrir a porta, eu vou ter que atribuir isso a Deus mais uma vez porque eu acho que, pra mim, é impossível abrir uma porta em Hollywood. É muito difícil! Mas pra quem tem fé e pra quem confia e crê, vai dar certo. Eu sei que vai dar certo, só não sei quando, mas eu vou fazer esse filme. E é o que me motiva morar nos Estados Unidos. Creio que já conquistei o Brasil, já fui da Globo – a Globo, querendo ou não, ainda foi ou é ainda a maior emissora. É como se fosse uma seleção brasileira: fui convocado e vou ser sempre aquele jogador que jogou lá na seleção. Não me interessa hoje também voltar pra qualquer emissora, pra mim não faz a menor diferença, mas já fui, já conquistei o Brasil e, agora, o mundo! Só. Através da tela do cinema. Eu tenho 58 anos, ainda tenho muito gás pra queimar, tenho uma lenha pra queimar e não quero me acomodar, não. Acho que eu posso tentar coisas grandes. Já consegui ser bem conhecido no Brasil, quem sabe Deus não me faz conhecido na América do Norte ou mais além!

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