A Festa do Senhor do Bonfim é o ápice do viver na Ribeira dos Icós, a 370km de Fortaleza. Começa logo depois da festa da padroeira, N. Sra. da Expectação (a que espera, a grávida do menino-deus), que sucede a de N. Sra. da Conceição (a da concepção, a que concebe). Juntas, tornam Icó cena pulsante dos festejos coletivos de dezembro: nascimento, natividade, renovação da vida. O núcleo histórico da cidade, desde 1997 considerado Patrimônio Nacional pelo Iphan, vira cidade-lapinha, com centenas de pequenos e grandes presépios. Narrativas expandidas.
Como os presépios, os festejos são feitos a mão. A maioria delas anônimas, zeladoras de práticas guardadas no tempo. Feito rio rumo ao mar, desembocam no dia 1° de janeiro, cinco horas da tarde. Hora da saída da procissão do Senhor do Bonfim no carro-andor, jardim suspenso. Depois de, literalmente e por mãos humanas, descer do altar na madrugada do dia primeiro, vai deslizar na cidade que surgiu das travessias de boiadas, tropas e trocas de um Ceará que nos parece remoto e nos surpreende ali na esquina. A imagem chegou há mais de dois séculos e meio migrando, migrante, sertão adentro, vinda da Bahia, onde aportou depois de, feito a alegria na canção do poeta, atravessar o mar vinda de Portugal.
Como um salmo responsarial, a procissão lembra, repete, insiste sobre as histórias do lugar, das suas gentes, a tarefa que nos cabe no cotidiano e da qual, por vezes, só nos damos conta em momentos como o que está por vir ao final dela mesma, a procissão: entre o nascer e o morrer, a invenção da vida no coletivo. Tudo o que foi feito, tudo o que se faz, aí desemboca.
Ao final da procissão, de volta ao patamar da basílica, um giro no carro-andor faz a imagem ficar de costas para a igreja e de frente para o mar de gente. O agora se dilata. Instaura um outro tempo o acontecimento que virá. Vira pele, respira com o solo, vibra em cada criatura. Talvez Icó nos ensine, não a parar o tempo, mas a experimentar o eterno em um instante de graça.
O maior está por vir. Os fogos do santo, o bombardeio, o tiroteio ou, como no coro que Icó ressoa, as bombas. O caminho de até 1km, com mais de 30 mil delas, tem um rigor construtivo, feitura esmerada, cálculo da vontade de beleza, catedral da contenção da violência da criação. Para existir pleno, sendo, no desfazer-se. Algodão cordão cera-de-abelha fio pavio papel taboca. Armação artesania engenho arte sabedoria.
Desmanchando-se ao correr do fogo no rastilho de pólvora. Um grande sertão, veredas, a explodir na talvez maior fatia de planície urbanizada do Ceará. No areal de outrora, antiga Rua Larga, atual Largo do Theberge, explode o rugir vida|morte|vida. Não há uma sem a outra. As bombas do santo acendem|explodem (n)o sagrado profano do existir.
Izabel Gurgel
é jornalista, pesquisadora e curadora da série Cidade Portátil
Novenas e caminhadas
"O Senhor do Bonfim para nós não é calvário. É exaltação", diz a professora Lourdes Maciel Peixoto, 79 anos. Além das novenas à noite, a ação dos carmelitas dá força às caminhadas que contam da expansão da cidade. Madrugada é hora de sair com andor nos ombros para missa ao nascer do sol no Alto da Cooperativa ou Cidade Nova, por exemplo. Fé na vida e café da manhã em mutirão.
As bombas
"Tem que ter bomba", diz Irismar Maciel Moreira, a professora Mazinha, 95. O real nos ultrapassa sempre. Hoje, o mestre dos fogos tem o nome do santo: Bonfim. E a mãe, o da padroeira. Dona Expectação tece o fio a ligar, por gerações, homens da família. Do marido Zé Madalena passando por Agostinho Gomes Oliveira, Antônio, Miguel... Janeiro de 2019, ao lado de Bonfim, sua sobrinha Jane Érica, filha de Cícero, neta de Vicente, fogueteiros magistrais, fez-nos lembrar das mulheres também sustentando o ofício.
A descida e a subida do santo
Há mais de 50 anos, Antônio (filho) de Zé Grande vai todo 1º de janeiro às 4 horas da madrugada para a igreja elevada a basílica. Guia a equipe que tira a imagem dos altos. Começa "a semana do beijo", da conversa ao pé do santo. Para a subida, 6 de janeiro, está lá a exercer o ofício que dá sentido à sua vida.