"Chegou a vez/ Eu hoje vou recordando/ E a velhice adesmanchando/ O que a mocidade fez/ Eita, reisado!" — soa o apito de Kátia Juliana. Palhaço Mateus, rei, rainha, contramestre, guerreiros, capitão, embaixadores, príncipe, princesa, jaraguá, burrinha, boi, bode, camaleão, ema e até lobisomem silenciam sob o comando da Mestra do Reisado Nossa Senhora da Saúde. Ao toque do instrumento de sopro, o folguedo embrenha-se pelas ruas da Varjota, cartografa cada viela do Grande Mucuripe, reconhece vizinhos — o neto de Dona Maria da Conceição, o primo de Kayla, a irmã de Carlos Eduardo. Nas chuvosas noites de janeiro, grupos de reisado percorrem Capital e interior batendo nas portas carregando nas cantorias e danças a milenar tradição da Folia dos Reis.

Festa popular trazida ao Brasil pelos portugueses ainda durante o período colonial, o reisado nasceu como uma manifestação católica para celebrar a Adoração dos Magos ao nascimento de Jesus Cristo. O folguedo tipicamente natalino, entretanto, logo ganhou elementos nacionais: sanfona, tambor, zabumba, violas, seres míticos e animais próprios da fauna nordestina entraram na brincadeira unindo o repertório de cada região. "Um povo sem cultura é um povo sem identidade e o povo está ficando esquecido da nossa cultura — de onde nós viemos, o que somos, o que pretendemos... A tradição e a cultura do reisado deveriam ser incluídas nas escolas, para ensinar, para passar. Eu estou com 61 anos de idade e quero deixar um legado, quero que continuem, que o reisado não se acabe", compartilha Marcos Antônio, Palhaço Mateus e fundador do Reisado Nossa Senhora da Saúde.

Nascido ao número 387 da rua Dom Amaro, na Varjota, o Reisado Nossa Senhora da Saúde completou 15 anos de atividades em 2019. A sede do grupo formado por 35 pessoas, atualmente, é também casa dos fundadores Marcos Antônio e Maria do Socorro, conhecida por todos como Mãe Help por criar e costurar as caracterizações dos integrantes do folguedo. "Nosso trabalho é sem fins lucrativos, junto com a comunidade. Nós viemos morar nessa casa há mais de 30 anos e aqui era um bairro numa situação difícil... Nós conseguimos saneamento, água encanada. Nos juntamos e nos organizamos, começamos um trabalho com a Pastoral da Criança", explica Marcos. Na década de 1990, revigorando a comunidade, o técnico em radiologia organizou uma quadrilha junina. "Um dia, três homens bateram na minha porta. Eram de um projeto de extensão da Universidade Federal do Ceará e do Sesc. Procuravam alguém para montar um reisado", relembra. Da quadrilha, então, surgiu a folia dos reis.

"Quando eu era menino, fui para um circo tentar ser palhaço. Não fui aprovado, tinham uns 150 meninos querendo ser palhaço, mas fiquei com isso na cabeça... Comecei a brincar no Reisado Brincantes Cordão do Caroá, pesquisando essa cultura e tradição milenar do reisado. Ganhei a cafuringa (chapéu afunilado com espelhos e fitas coloridas) de Palhaço Mateus. Somos netos do Discípulos do Mestre Pedro (conhecido como Reisado dos Irmãos em Juazeiro) e filhos do Cordão do Caroá", resume Marcos. Entre laços afetivos e também consanguíneos, o Reisado Nossa Senhora da Saúde uniu vizinhos, primos e amigos e formou família: a Mestra Kátia Juliana é filha de Marcos e Socorro; o zabumbeiro Cristiano de Souza é neto do casal. Hoje, o grupo da Varjota é composto principalmente por crianças e adolescentes.

Aos 37 anos, Juliana é uma das duas únicas Mestras mulheres de reisado em Fortaleza — "a outra é Dona Fátima, do Reisado Nossa Senhora Aparecida", explica. "Eu sou muito feliz de comandar esse reisado. A gente vê o carinho das crianças quando vestem a roupa e chegam pra ensaiar. Tem até um dizer do Mestre Aldemir, de Juazeiro: 'Que Deus me dê muita saúde'. Eu digo a mesma coisa: que Deus me dê muita saúde para eu continuar por muitos e muitos anos levando essa cultura com meu pai e as crianças", deseja a cantora. O trabalho é árduo e só para durante o Carnaval — nos outros dias do ano, os ensaios acontecem às segundas, quartas e sextas. "Durante a noite para não atrapalhar ninguém na escola", pontua.

Aluno em tempo integral, o jovem Carlos Eduardo anseia pelas noites de ensaio. Desde os três anos de idade, o estudante — que deseja ser ator — brinca reisado na rua ao lado dos amigos. Hoje, aos 16, é rei. "Nem eu lembro mais como entrei no reisado. De primeiro eu era o general, depois virei o capitão e agora sou rei. O reisado é tudo na minha vida, é tudo pra mim", define. Kayla Vitória, 10 anos, também já brinca reisado há tempos. "Eu gosto de tudo também. Sou a princesa e faço a doida nos entremeios. Um primo meu também brinca", comenta. Sobrinho de Juliana, o zabumbeiro Cristiano aprendeu a tocar tambor observando os mais velhos. "Desde pequeno eu tinha esse negócio com batuque e agora eu tô aí, no reisado, até quando Deus quiser, até quando eu ficar velho", promete. Hoje, a dificuldade de manter um reisado é o medo que muitos têm de abrir as portas de casa — mas, quando "meu senhor, dono da casa" deixa o reisado entrar, acolhe uma história de milênios cantada por vozes ainda tão jovens.

Programação de Reisados em Fortaleza

Reisado Nossa Senhora da Saúde

Quando: amanhã, 5, a partir das 18 horas

Onde: Cortejo pelas ruas da comunidade e apresentação em frente à sede do reisado (rua Dom Amaro, 387 - Varjota)

Quando: dia 6, das 12h às 14 horas e das 18h às 20 horas

Onde: Shopping Rio Mar Papicu

 

Reisado Brincantes Cordão do Caroá

Quando: dia 6, a partir das 19 horas

Onde: Reitoria da UFC (Av. da Universidade, 2853 - Benfica)

Gratuito

 

XIV Mostra Estadual Ceará Ciclo Natalino

Quando: dia 6, das 8h às 18 horas

Onde: Praça do Ferreira (Centro)

Gratuita

Apresentações de reisados, bois, pastoris e dramistas