Década de 1980. As primeiras gerações nascidas pós Segunda Guerra Mundial, conhecida como os baby boomers, começavam a ditar os caminhos da sociedade de consumo. Músicas mais alegres estavam no topo das paradas, filmes com temática mais livres ganhavam os jovens e, em meio a isso, a ânsia por ler quadrinhos era crescente. Existia, porém, um grande problema: eram tantos heróis, tantas histórias, tantos vilões, que se tornava difícil pegar esse bonde andando. Para resolver essa questão, a DC Comics resolveu pressionar o botão reset em seu rico - e vasto - universo. Em 1986, Crise nas Infinitas Terras começava a ser lançada, marcando o fim da Era de Bronze e início da Era Moderna dos quadrinhos.
A empresa, fundada em 1934, tinha acabado de completar 50 anos e precisava organizar seu plantel de heróis e vilões. Para isso, chamou Marv Wolfman (roteiro) e George Perez (desenho) que, após quatro anos de estudo, entregaram o primeiro grande crossover (reunião de personagens de títulos ou séries diferentes) do universo dos quadrinhos. Histórias, várias versões do mesmo herói e realidades paralelas se juntaram em 12 edições para conter o avanço de uma ameaça sem precedentes: o Anti-Monitor, que estava destruindo planeta a planeta tudo que a DC Comics havia criado ao longo das décadas.
Trinta e três anos depois é a vez da empresa voltar a fazer a mesma coisa, só que na TV, que já conta com vários heróis em várias versões também (nada que chegue perto dos quadrinhos, porém). Assim como um dia reordenou os universos dos gibis, a ideia agora é organizar as Terras das séries The Flash, Supergirl, Batwoman, Arrow, Legends of Tomorrow, Patrulha do Destino, Raio Negro, Titans, Lúcifer e as canceladas, porém consideradas, Gotham e Constantine.
Esse é o maior crossover entre heróis já exibidos na TV. O que a Marvel fez no cinema com Vingadores: Ultimato em 2019, a DC Comics e o canal CW promoverá no episódio final de Crise nas Infinitas Terras. A intenção é ter o máximo de heróis em tela e se firmar como um dos grandes marcos da cultura pop que servirá para agrupar os vários personagens, mas também para dar mais respaldo às produções televisivas da editora.
Já existiram outros crossovers. Nos últimos dois anos a DC promoveu Invasão e Elseworlds, que não chegam aos pés da megalomania proposta por Crise. Para condensar essa organização de universo, a história foi dividida em cinco episódios; três já foram exibidos em dezembro de 2019 nos episódios das séries Supergirl, Batwoman e Flash, e voltam para a parte final no dia 14 de janeiro de 2020 com Arrow e Legends of Tomorrow.
Na primeira parte ficou claro que a Crise dos quadrinhos vem apenas como inspiração. Apesar do crossover na TV ser grande, ainda está aquém da magnitude das revistas. Porém, o evento vem para consolidar algo que a DC já planeja a algum tempo, e que pode reverberar inclusive do cinema. Em vez da Marvel, que propõe um único grande universo compartilhado, a DC pode, após Crise nas Infinitas Terras, definir o seu "multiverso", fazendo cada herói e suas respectivas versões terem um local bem definido, mesmo que sua origem tenha sido em outras plataformas que não a TV ou em outras séries que precedem esse novo projeto. Dessa forma, ela não precisa desconsiderar os nomes que hoje estão nos filmes caso queira trazer outros atores e atrizes para os papéis. Os personagens, inclusive, podem ir e vir entre os universos propostos sempre que for necessário.
A grande intenção de Crise nas Infinitas Terras é gerar uma espécie de mapa, localizando bem o novo espectador, sem ferir as histórias dos que já estavam há alguns anos acompanhando as séries.
PH Santos é membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine)
E depois?
Arqueiro-Verde - Na revista, Supergirl e Flash (versão Barry Allen) ficaram marcados por se sacrificarem na luta contra o Anti-monitor. Na TV, com o final anunciado de Arrow e a substituição de Oliver Queen por Mia no manto do Arqueiro-Verde, é provável que ele seja o grande sacrifício da vez. Em episódios passados, o Arqueiro fez um pacto com o Monitor para que ele poupasse Flash e a Supergirl e o usasse no lugar.
Supergirl - A personagem deverá migrar da Terra-38 para a Terra-1, fazendo com que ela participe mais das outras séries do canal CW. A personagem, que é uma das mais queridas pelo público, já fez até um episódio musical com o Flash. A dose deverá ser repetida mais vezes.
Cinema e TV juntos - O conceito de multiverso, apresentado nos crossovers anteriores, chegará ao seu ápice ao se juntar, até agora unilateralmente, com o cinema. Além do Superman de Brandon Routh, a série prestará homenagens ao Batman de 1989 e ao Superman de Christopher Reeve (décadas de 1970 e 80). Além disso, reconhecerá Smallville como parte desse multiverso, permitindo que personagens antigos possam voltar à ativa.
Batwoman - A heroína se afirmará como a real representante do Batman nesse universo. Em um dos episódios, buscando um Batman que resolvesse a situação da Crise, ela se depara com a versão vivida por Kevin Conroy, que foi dublador do Bruce Wayne/Batman na clássica série animada. Ele está velho, usa aparelhos para se manter em pé e nem de perto parece ser quem irá resolver a situação. A partir daí, simbolicamente ela se torna a representante do Morcego na TV, dando mais destaque e peso para a caçula das séries (Batwoman tem apenas uma temporada).
Atravessando gerações
Minha relação com a Crise é meio diferente da maioria dos fãs de quadrinhos. Eu conheci a saga anos depois da publicação. Na verdade, eu já a conhecia, mas nunca tínhamos tido um relacionamento sério. Um encontro cara a cara, sabe? A primeira vez ocorreu há alguns anos, quando o cinema e a TV começaram a considerar os heróis como um nicho realmente promissor, mas não entendiam direito o conceito dos "crossovers". Essa expressão, na real, é uma palavra que só existia - até pouco tempo - no mundo dos quadrinhos e naquele círculo de amigos mais nerd possível.
A questão com a Crise é que ela eleva essa dita "nerdice" para um patamar tão absurdo que dá a volta e fica meio simples de entender. Não me entenda mal, misturar heróis de realidades alternativas e "criar" 52 Terras diferentes em uma história está longe de ser simples, eu sei - mas devido à jornada e o foco nos personagens, seus poderes e características mais humanas, a história me fez me aproximar daquela mitologia tão rebuscada da maneira mais simplória: pela empatia. Na essência, foi o resgate dos traços clássicos de heróis como Superman, Supergirl e Flash que me fizeram me envolver com aquela história tão maluca.
As misturas de realidades e confusões na linha do tempo continuam, mas agora com o rosto dos atores que criaram uma ligação diferente com os fãs da DC - e, mais importante, com os novos fãs da DC, que foram criados a partir dos seriados Arrow, Supergirl e Flash em carne e osso. E ainda que essas séries de TV não ressoem comigo como os quadrinhos o fizeram, elas têm um valor bem grande para essa nova geração. É a vez de uma nova galera ser impressionada pela possibilidade de unir todos os heróis de uma vez só num universo fictício tão rico quanto o da DC. Eu, agora em relacionamento bem estável com a antiga Crise, poderei assistir tranquilo essa nova paixão ressurgir para novos fãs.
Thiago Romariz, jornalista e gerente de conteúdo do Ebanx
Heranças
Durante o ano de 1985, a DC lançou as 12 edições de Crise. Quase uma década depois, quando meu tio me passou parte de sua coleção, lá estava ela. Desde então, mundos viveram e morreram várias vezes na DC. Vieram a Crise Infinita, a Crise Final, dentre outras. Mas nada se comparou com os sacrifícios e a tensão que vi na original, quando a morte de tantos heróis parecia imutável. Em meio ao desespero e triunfo, surge o conceito de legado que por tanto tempo definiu a DC, ao menos para um garoto que recebeu do tio uma herança de aventuras, meio como Wally West recebeu do seu tio Barry o manto do Flash.
Thiago Siqueira, crítico de cinema
Dias de crise
Tive o privilégio de viver a saga nos anos 1980, desde o anúncio nas sessões de cartas dos leitores (no mundo sem internet era assim) até as suas consequências que mudaram tudo na DC com o Super-Homem de John Byrne, Batman remodelado por Frank Miller, Mulher Maravilha de George Perez, entre outros excelentes legados. Uma época de ir ansioso às bancas atrás de uma nova história. Foram meses muito pesados acompanhando aquela tragédia, com tantos morrendo como o Flash e a Super-Moça (Supergirl), mas com um final apoteótico, uma batalha com todos os heróis, no estilo de Vingadores: Ultimato, e um grande respeito ao maior de todos, aquele que colocou a pedra fundamental da editora: o Superman de 1938.
Erinaldo Dantas, advogado e fã de carteirinha da DC Comics