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A importância da diversidade para os processos de curadoria
Vida & Arte

A importância da diversidade para os processos de curadoria

Vida&Arte discute a importância da diversidade de raça, classe, gênero e sexualidade na prática curatorial em diferentes linguagens artísticas
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Ailton Krenak participou da XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, evento que se destacou pela presença de não-brancos e mulheres (Foto: Felipe Abud / divulgação)
Foto: Felipe Abud / divulgação Ailton Krenak participou da XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, evento que se destacou pela presença de não-brancos e mulheres

O surgimento do termo "curadoria" enquanto função social remete ao Império Romano, definindo-a enquanto a ação da pessoa - curadora - que cuidava dos filhos de pais que morriam na guerra no Império Romano. O conceito atravessou o tempo e encontrou nova função no contexto das artes, ainda trazendo consigo noções de cuidado. "O primeiro uso do termo vem dessa ideia do cuidado em relação ao outro. Quando a gente pensa em curadoria de artes, pensamos em como compor uma seleção de obras artísticas e, de certa forma, o curador tem esse cuidado e zelo com as obras e com tentar compor essa seleção para determinado tipo de público", afirma Camila Vieira, crítica e curadora de cinema. A "cura" que a curadoria possibilita é múltipla. "O processo de cura tem a ver com a relação do curador abrir o olhar para outras formas de fazer que não sejam as que estão dentro do seu conhecimento prévio. Nesse sentido, é como se o curador se curasse dos vícios que têm", define. Partindo de contexto local, o Vida&Arte discute práticas curatoriais aliadas à questões de raça, classe, sexualidade e gênero.

Com experiência de atuação em processos de avaliação e seleção de projetos de centros, fundações e secretarias culturais, Nádia Sousa atesta: não dá para separar técnica e estética das discussões de diversidades. "Deve se levar em conta equidade de gênero, que para mim é fundamental, tem que pensar de onde vem a proposta e para onde se destina, a quem vai atender. Pensar em representatividade e diversidade é fundamental em qualquer curadoria artística. Tem que pensar na estética e na técnica, mas elas devem vir atreladas a outras questões. O papel da pessoa que está fazendo a proposta curatorial é tentar equilibrá-las", defende.

Envolvido em diversos movimentos de descentralização da literatura na Capital, organizador da Livro Livre Curió - Biblioteca Comunitária, editor, poeta e mediador de leituras, Talles Azigon será, em 2021, um dos curadores da Bienal Internacional do Livro do Ceará, dividindo atuação com a escritora mineira Conceição Evaristo. O artista e produtor aponta, porém, que a realidade majoritária local é outra. "Curador é uma profissão de cerne elitista. Na realidade da cultura no Brasil, principalmente no Nordeste, onde se praticam menores remunerações em decorrência de baixíssimos investimentos, geralmente quem faz o papel é o 'dono' do evento, festival ou programa. Ou, para economizar, centros culturais colocam produtoras e produtores na curadoria. Foi sendo produtor cultural que acabei sendo forçado a aprender curadoria", divide.

"Uma boa/bom profissional deve circular no maior número de espaços possíveis, ver pessoalmente o que está acontecendo, tocar os extremos. O maior desafio para um bom trabalho de curadoria é o de sair do seu marasmo e ir conhecer a maior diversidade possível das obras, artistas e grupos, que conseguir", convida. Caso contrário, o caminho retroalimenta elitismo e retira diversidades possíveis. "Por isso temos a noção de ver sempre a mesma coisa nos eventos e termos programações quase sempre brancas e composta de homens, afinal esse geralmente é o perfil do curador", resume Talles. (Continua na página 4)

 

Indicadores

O boletim "Raça e gênero na curadoria e no júri de cinema" - publicado em 2018 pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - aponta que, em 2017, somente 3,6% das pessoas que compunham equipes curatoriais no recorte proposto - focado em 19 mostras e festivais de cinema escolhidas - eram negras, enquanto que, em relação ao gênero, somente 36,53% eram mulheres. Não surpreendentemente, o espectro com maior participação foi o de homens brancos exercendo a função, sendo 56,16% dos analisados. Em diálogo com os números expostos, o grupo Guerrila Girls, criado em 1985 e composto por artistas mulheres anônimas que buscam combater o sexismo nas artes, costuma trazer dados sobre gênero em suas obras. Em 2017, levaram a exposição Guerrilla Girls: Gráfica, 1985-2017 ao Museu de Arte de São Paulo. Num dos levantamentos, usando estatísticas do próprio Masp, mostra que 6% dos artistas do acervo do museu em exposição eram mulheres, enquanto 60% dos nus retratados eram femininos - números facilmente ligados ao processo histórico da curadoria sendo exercida sob ponto de vista de homens brancos, cis, heterossexuais e ricos.

Na XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, a mineira Conceição Evaristo foi uma das grandes atrações e, ao final do evento, foi anunciada como uma das curadoras da próxima edição
Na XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, a mineira Conceição Evaristo foi uma das grandes atrações e, ao final do evento, foi anunciada como uma das curadoras da próxima edição

Curadoria feita com o coletivo

A conquista de espaços e as rupturas do hegemônico se fazem, sim, presentes nos gestos dos que fazem arte, mas também surgem na instância da curadoria. Na Capital, eventos como a Mostra Negritude Infinita, o Festival da Poesia de Fortaleza ou a exposição Território Somos Nós - Salão de Artistas sem Casa são exemplos bem-vindos de iniciativas propostas por novos olhares, corpos e discursos. Elas surgem, porém como exceções à uma regra branca, cisgênero, binária e hétero-masculina. Reparar em quem são as pessoas que escolhem, programam e compõem eventos artísticos diz muito de processos possíveis para as diversidades no campo das artes.

Exceção ele mesmo à regra, o poeta e produtor cultural Talles Azigon sugere que o pensamento de curadoria dentro de gestões deve ser revisto. "É preciso que gestores da cultura sejam mais comprometidos e escolham melhor quais serão os processos curatoriais dos eventos e projetos e quem irão chamar para ajudar a conduzir esses processos. Seria bom também que entendessem que não precisam ser os curadores dos eventos e projetos que encabeçam", propõe. "É muito difícil falar em contra-hegemonia em um Estado em que as mesmas produtoras fazem todos os eventos dos assuntos mais variados, que a mesma organização social controla todos os equipamentos culturais, que as grandes empresas estejam vinculadas a dois ou três grandes captadores de recursos", avalia.

É por isso que movimentos de diversidade na curadoria ocorrem muito mais quando à revelia de espaços e normas "oficiais". "Talvez os únicos pensamentos curatoriais contra-hegemônicos são aqueles localizados nas periferias da cidade, que acabam fazendo trabalhos artísticos de uma forma 'faça você mesmo'. 'Já que nós não somos selecionados pra nada, a gente vai realizar nossa seleção e organizar nossos rolês'. A gente tem trabalhos bacanas que acontecem com coletivos no Conjunto Ceará, no José Walter e em outros bairros da cidade, então quem pratica curadoria contra-hegemônica é quem vai contra o establishment cultural", aponta Nádia Sousa, produtora e gestora cultural. "A verdadeira contra-hegemonia no Ceará acontece nas ruas, nos eventos que coletivos independentes criam, nos saraus, nas periferias onde as pessoas têm o direito de se apresentar, nas casas independentes dos grupos de teatro, nas feiras independentes, nas mostras alternativas. Esses espaços fazem práticas curatoriais contra-hegemônicas pois fazem com o público, com o coletivo e com as pessoas que estão circulando de verdade nas cidades", dialoga Talles.

"Os curadores têm também que vir de espaços de representatividade e diversidade. Curadores e curadoras que representam minorias e que vêm de regiões periféricas da Cidade, porque a gente precisa desses olhares e desse 'lugar de fala' para tentar minimizar uma lacuna imensa no que diz respeito a descentralização, de fato, da arte e da cultura da Cidade e do Estado", reforça Nádia. A presença de "exceções" em locais de poder - seja ele econômico, político ou cultural - lança luz na visibilidade de ausências, como no caso da cearense Camila Vieira, que compõe a equipe curatorial de curtas da Mostra de Cinema de Tiradentes. "Fico pensando que uma mulher, nordestina, vinda do Ceará, sendo convidada para estar fazendo isso é uma exceção. A gente pode pensar várias outras coisas a partir disso: quantas mulheres negras fazem parte de equipes de curadoria? Quantas mulheres foram do eixo Rio-SP? Existem pessoas trans dentro desses lugares? São questões que a gente precisa refletir", observa. "Se não dá pra mudar tudo drasticamente, dá para, pelo menos, ir dando umas pinceladas e, aos poucos, escurecer e diversificar a arte e a cultura no Estado. Para isso, mais gente preta, que veio das 'perifas', mais mulheres, mais pessoas indígenas, mais jovens, mais idosos, precisam ter a oportunidade de estudar, ler, conhecer e circular para ocupar cargos de gestão e produção cultural, e ajudar a forçar processos curatoriais mais diversos", propõe Talles.

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