O que têm em comum um filme que se baseia numa viagem delirante pelas memórias de um jovem ferido no sertão baiano do começo do século XX e um drama denso que une diversas discussões contemporâneas numa Ouro Preto moderna? Para além de serem ambos dirigidos por cineastas nordestinos veteranos, Sertânia e Os Escravos de Jó, assinados respectivamente por Geraldo Sarno e Rosemberg Cariry, são produções da cearense Cariri Filmes que foram rodadas fora do Ceará. A presença dos dois na seleção da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes estimula a pensar o papel no audiovisual de intercâmbios e co-produções possíveis, com seus ganhos e desafios, entre profissionais de diferentes estados.
Os Escravos de Jó abriu o evento mineiro na última sexta, 24, compondo a Mostra Homenagem - neste ano dedicada a Camila e Antonio Pitanga, este componente do elenco do filme de Rosemberg -, enquanto Sertânia foi o longa que abriu a competição da paralela Mostra Olhos Livres no domingo, 26. Eles são os primeiros filmes da produtora feitos integralmente fora do Ceará, como contou a produtora executiva das obras Bárbara Cariry em entrevista ao O POVO durante o evento mineiro. "A gente fez primeiro o Sertânia e teve um intervalo de cinco ou seis meses que eu precisava pra fazer a pré do Escravos, porque também era o desafio da viagem, da saída. O grande desafio foi encontrar novas parcerias. Quando, no Ceará, estou muito mais acostumada a fazer negociações, mas ir a outros estados pediu um pouco mais de tempo para mapear e entender novos espaços e novas parcerias que íamos firmar", explica.
Os dois projetos foram pensados desde o princípio para serem produzidos fora do Ceará: Sertânia acompanhava há anos o baiano Geraldo Sarno enquanto projeto, até ser concretizado com a entrada da produtora Cariri Filmes no processo. "Ele é amigo do Rosemberg de longa data e falou sobre o projeto pra gente, que queria muito filmá-lo. A Cariri entrou como produtora, o roteiro já era desenvolvido, e a gente começou a fazer inscrições em editais nacionais. Foi muito importante a experiência, foi a primeira vez que fizemos um projeto integralmente fora do Ceará", contextualiza Bárbara. Já Os Escravos de Jó "nunca foi um projeto pensado para Fortaleza. Era internacional, mas por conta dos recursos a gente entendeu a inviabilidade de sair do País e ajustou o projeto para o Brasil e, então, pensamos em Ouro Preto, cidade brasileira que tem questões da memória, história, patrimônio", afirma a produtora.
Enquanto o primeiro foi filmado nos municípios de Milagres, Brumado e Marcionílio de Souza com uma equipe de diversos estados e nacionalidades, o segundo, mesmo rodado em Minas Gerais, contou com equipe majoritariamente do Ceará. "Em Sertânia, a equipe de produção saiu do Ceará pra filmar e, na Bahia, Geraldo reúne outras pessoas no processo, aí vêm por exemplo a Anita Dominoni, uma 'argentina-baiana' que fez direção de arte e figurino, e o Miguel Vassy, fotógrafo uruguaio radicado no Rio. Os Escravos de Jó já foi uma equipe 80% cearense. Direção de arte, técnicos, equipe toda de fotografia, produção, a gente fez esse intercâmbio cearense para Minas", conta Bárbara.
Os desafios de filmar fora do Ceará foram intensificados por conta dos recursos. Ambos os filmes são oriundos de editais federais para filmes de baixo orçamento. "Quando a gente filma baixo orçamento em casa é uma coisa. Quando filma fora, é outra", estabelece a produtora. Filmar em uma cidade turística como Ouro Preto possibilitou aberturas junto à órgãos e instituições, apesar de dificuldades de negociações financeiras, enquanto no interior da Bahia eram outros os desafios. "Existem cidades que estão muito abertas pro cinema pra cultura, pras artes em geral. Quando não há disponibilidade financeira, há às vezes a institucional, a da população", afirma Bárbara. "Diante do panorama que está se desenhando hoje, de um cinema feito através de editais que estão cada vez mais diminuindo, a ideia desses intercâmbios é importante porque você acaba conseguindo viabilizar algumas coisas", aponta. "Mesmo achando importantíssimo filmar no Ceará - filmei 90% do que fiz no Estado e acho muito importante pra nossa identidade filmar temas nossos, inclusive os universais - é legal fazer essas trocas, são importantes para nossa profissionalização", ressalta.
Nessa discussão, pensar o lugar do Ceará como local potencial para receber parcerias e co-produções de fora desponta como questão. Vale lembrar que, em abril de 2019, a Prefeitura de Fortaleza anunciou uma série de investimentos para a cultura no município e, entre deles, estava a criação de uma film commission na capital - ou seja, uma coordenação atrelada à Secretaria da Cultura municipal dedicada a organizar liberações e ações de filmagens em espaços da cidade, numa aliança entre indústrias audiovisual e turística. "O projeto de mostrar o Estado como lugar onde muitas histórias podem ser contadas, na nossa geografia múltipla e ampla, é antigo. Acho interessantíssimo e bom para todo mundo", opina Bárbara, que vê a intenção ainda em processo. "Tenho a impressão que existem lugares que estão muito acostumados com cinema. Há cidades que, quando a gente vai, conseguimos trazer pessoas, produtores locais, uma série de profissionais que trabalham com cinema. Isso é bom pra todo mundo, mas esse processo não está todo feito não. Está se encaminhando bem, mas pode melhorar muito mais", avalia.
O repórter viajou a convite do evento