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Dia da Visibilidade Trans: artistas compartilham vivências além das normas estabelecidas
Vida & Arte

Dia da Visibilidade Trans: artistas compartilham vivências além das normas estabelecidas

Hoje, 29, é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Letícia Lanz, Isadora Ravena, Jonas Van e Linga Acácio compartilham vivências além das normas estabelecidas. Continua na Página 3
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Obra Não há perdão, de Jonas Van, 2017
 (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Obra Não há perdão, de Jonas Van, 2017

 

Dicionário

"Pessoa trans é uma abreviatura de pessoa transgênera, ou seja, de pessoa que transgride a norma de gênero em vigor na sociedade. De acordo com essa norma, toda pessoa que nasce macho, ou seja, com um pênis, é classificada como homem. Da mesma forma, se a pessoa nascer fêmea, ou seja, com uma vagina, é classificada como mulher.

É importante perceber que macho e fêmea são determinismos biológicos da natureza, enquanto homem e mulher são programações e expectativas de desempenho social arbitrados aos indivíduos pela sociedade em função exclusivamente do órgão genital que apresentam ao nascer. Chamamos de gênero a esse elenco de atribuições e comportamentos que a sociedade estabelece. Pessoa trans é alguém que "transgride" as normas do dispositivo de gênero em vigor na sociedade.

Existe uma multiplicidade de identidades transgêneras, ou transidentidades, sendo que as denominações mais conhecidas no nosso País são travesti, transexual, transformista, dragqueen, crossdresser (CD), andrógino e não binário".

Letícia Lanz é trans, psicanalista, mestra em Sociologia pela UFPR e referência na discussão sobre Estudos Transgêneros. Leia na íntegra em opovo.com.br/vidaearte

 

Não há perdão, Jonas Van, 2017.
Não há perdão, Jonas Van, 2017.

A letra T

Por um trans-projeto imaginativo de futuro

O número de assassinatos de travestis e transexuais no Brasil em 2020 aumentou 180% em relação ao mesmo período do ano passado, em levantamento realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), referente ao período entre 1º e 24 de janeiro. Há em curso um projeto político de extermínio da população T e é preciso atentar que esse projeto não se inicia e não se encerra no ato de matar, ele contempla também o exercício de mortificar, de excluir, de destinar esses corpos à patologia, de jogá-los para as margens da sociedade, de retirar-lhes os poucos direitos adquiridos com tantas lutas. Enquanto artista, arte-educadora e travesti, me pergunto cotidianamente: quais os nossos projetos políticos? Como arrancar do futuro a possibilidade de permanecer viva? Acredito que as existências trans/travestis só se tornam possíveis se guiadas por um esforço de imaginação. Sim, imaginação. É preciso mais que nunca que nos dediquemos ao exercício da imaginação de novos futuros, não mais contornados pelos limites de um mundo instaurado pela normalidade. Estamos, pessoas trans/travestis, a desenhar novos mundos, não mais guiados pelas binariedades sufocantes: o eu e o outro, o corpo e a mente, o homem e a mulher. É, sem dúvidas um projeto arriscado, por vezes silencioso, um projeto de fuga, um plano estratégico. Nessa guerra, a arte têm se tornado aliada. Descobrimos que a arte pode e deve ser uma plataforma de criação de novos modos de existir. Estamos, a partir da arte, tornando coletivo o empenho em imaginar. Somos muitas, muitos, muites artistas trans/travestis e por caminhos múltiplos desenhamos para a arte novas questões, novas abordagens, outras epistemes, um colapso estético. Artistas trans estão a abalar as certezas, a colocar em xeque as concepções sociais fundantes sobre corpo, sobre arte e sobre vida. Nosso projeto é apocalíptico, ele invoca o fim das certezas e da norma. Nossos projetos imaginativos estão a riscar novos futuros mas se inscrevem no agora. É agora. É pra já!

Isadora Ravena é travesti, artista e arte-educadora. É Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará

 

Como começar um incêndio

Existem 35 crateras lunares com nomes de padres jesuítas. 35 crateras lunares com nomes de homens cis brancos. 35 crateras lunares com nomes de homens que mataram em nome de Deus. A essas crateras, assim como nossas estruturas políticas e íntimas, foram conferidos nomes em línguas mortas baseadas em uma moral esgotada. Nomearam os desejos, as terras e os fantasmas. O poder da nomenclatura das coisas é um poder branco e cisgênero. Assim opera a dissidência: um problema linguístico. O que a norma não consegue nomear, não pode controlar.

Ao transicionar, pensei que o fogo não é isolado do ar. Toda estrutura sempre conduz algum calor. Duas pedras se esfregando, um coração partido, tudo em chamas... Transicionar é entrar em combustão. O fogo é a transmutação da matéria orgânica, queimamos para existir. O corpo entra em chamas graças a quantidade de energia que a gordura corporal acumula. Ou escolhemos queimar para ter o poder de nomear a nós mesmas e outras gêneses. Essa humanidade está obsoleta, tudo que construímos agora são arquiteturas possíveis a partir dessa transição. Levamos o luto de uma terra arrasada, mas ao desaparecer com o fogo, esquecemos a colonialidade cruel que um dia capturou nossas almas. Transicionar é questionar o nome que te deram.

Jonas Van é artista transviado cearense e cozinheiro. Sua prática costura ferramentas anticoloniais estéticas e espirituais

 

Não me renderei a nomes que limitam minha vida

Junte com es minhes tenho construído nosso semeadouro. Trago comigo minhes transcestrais, aquelus que ousaram imaginar o futuro que sou hoje. Dignificar a existência trans pra mim é uma luta diária frente a uma estrutura de um estado colonial que pauta de forma compulsória o aniquilamento, a exclusão e a precarização de nossas vidas. Colapso, as catástrofes já anunciam: nossa terra se erguerá em meio às cinzas da estrutura humana branca hétero cis sexista sorofóbica. Como estratégia de luta tenho acreditado em uma organização interseccional para criar espaços de segurança onde possamos trabalhar nossa autonomia e autoestima frente a leis cissexistas, racistas e classistas. Para a construção de nossos viveres precisamos de condições, cachês, salários, aqué! Não queremos pouco! O respeito a nossa existência passa pela garantia dessas condições. Raquearemos todos os espaços de poder, política, educação, ciência. Nenhum homem nos impedirá pois somos o movimento e o futuro já é trans, negro, originário e antihumanista. Somos muites, uma enxurrada travesti, boyceta, não binária. Implantarei nesse cistema uma bomba que fará morrer aquilo que nos mata e germinar uma vida plena para es minhes. Não me renderei a nomes que limitam minha vida. Sou uma cobra de mil nomes. O apocalipse é minha profecia do agora, devolverei a maldição que me impuseram. O fogo queimará a humanidade e dessa terra arrasada nossa vida brotará e frutificará.

Linga Acácio é pesquisadora, artista visual e cineasta

 

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