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Obras revisitam o Ceará oitocentista
Vida & Arte

Obras revisitam o Ceará oitocentista

Pintor José dos Reis Carvalho acompanhou a Comissão Científica de Exploração e produziu alguns dos mais importantes registros em imagens do Ceará do século XIX. A obra recebe nova interpretação pelo geólogo Francisco Ivo
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Ao lado do grupo de cientistas que percorreu o Ceará entre 1859 e 1861, havia artistas. O mais conhecido deles, o poeta Gonçalves Dias, chefe da seção Etnográfica e Narrativa de Viagem. A seu tempo, foi o maior poeta brasileiro, marco do romantismo no País e inaugurou uma poesia nacional. Foi ainda jornalista, advogado, professor de história e latim. Isso tudo apesar de ter morrido aos 41 anos. No Ceará permaneceu por um ano e meio. Deixou seus colegas de expedição em agosto de 1860 e seguiu para o Maranhão, sua terra natal, e depois para a Amazônia. Nunca chegou a escrever o relatório da Imperial Comissão Científica e Comissão Exploradora das províncias do Norte - denominação oficial da mais conhecida como "Comissão das Borboletas". Mais produtivo foi o trabalho do outro artista.

José dos Reis Carvalho integrou a Comissão Científica de Exploração como pintor. Sabe-se pouco sobre ele. Acredita-se que tenha nascido em Niterói. Foi tenente da Marinha, professor na Escola da Marinha, aluno da primeira turma da Academia de Belas Artes, onde estudou com Jean-Baptiste Debret, expoente da Missão Artística Francesa que chegou ao Brasil em 1816, na esteira da vinda da família real portuguesa e da abertura dos portos às nações amigas.

Era conhecido como competente pintor de flores e plantas, razão pela qual provavelmente foi escolhido pelo chefe da seção Botânica, Francisco Freire Alemão, para acompanhar a expedição. A contribuição, porém, foi muito além da flora cearense. Reis Carvalho construiu um dos mais ricos conjuntos pictóricos sobre o Ceará da metade do século XIX. As pessoas, os lugares, a arquitetura, a fauna, os costumes, as festas, os utensílios, a vida da província entre 1859 e 1861 foi retratada por ele.

Produziu intensamente, embora tivesse comportamento errático. "O pintor José dos Reis Carvalho amava a boa pinga e chegou a viajar com rameira à garupa de seu cavalo", registraram seus colegas de viagem, segundo o autor Renato Braga em História da Comissão Científica de Exploração (Edições Demócrito Rocha, 2004). Freire Alemão, que era médico além de botânico, relata que em algumas ocasiões precisou socorrê-lo quanto às doenças venéreas que adquiriu.

Como as fotografias da expedição - uma das novidades que a Comissão das Borboletas trouxe - perderam-se no naufrágio da embarcação Palpite, no litoral oeste cearense, as pinturas e desenhos foram o que de mais relevante ficou da produção de imagens sobre o que viram aqueles cientistas.

O trabalho de José dos Reis Carvalho recebe releitura artística realizada pelo geólogo cearense e artista plástico Francisco Correia Ivo, residente hoje em Niterói - onde provavelmente nasceu Carvalho. Como a própria comissão exploradora, ele reúne o científico e o artístico. Ivo revisita a obra do pintor oitocentista, fazendo fusão entre diferentes obras, transformando ou atualizando o contexto.

O trabalho surgiu a partir da exposição Quatro Estações - Antropoceno (Rio São Francisco), onde parte das obras de Antônio Vivaldi (1678-1741) para fazer paralelo entre o meio ambiente na época do compositor italiano e hoje. A partir daí, passou a abordar a ocupação da bacia hidrográfica do rio São Francisco. Como a obra de transposição deverá levar água do São Francisco para o rio Jaguaribe e o rio Salgado, a obra de Francisco Ivo fez sua própria transposição.

"Achei na Comissão Científica de Exploração uma forma de falar da bacia hidrográfica do rio Jaguaribe, por onde correrão as águas do São Francisco, conhecendo melhor os dias em que os naturalistas estiveram nas cidades ribeirinhas varridas pela brisa do Salgado, dentre elas: Aracati, Icó, Lavras da Mangabeira e o Crato, em particular". As obras foram recriadas em óleo sobre tela.

 

A cidade e o farol

José dos Reis Carvalho pintou o na época recém-construído Farol do Mucuripe (acima). O hoje farol velho, desativado e abandonado. Quando a Comissão chegou, em 1859, o farol estava em operação havia 13 anos, desde 1846. Francisco Freire Alemão o descreveu como "pequenino e mal asseiado". Na época, o farol era distante do núcleo urbano, concentrado em torno de onde hoje fica a catedral. Em sua releitura (à direita), Francisco Ivo recriou o farol com o entorno ocupado de casinhas da comunidade do Serviluz.

 

Falésias

Francisco Ivo se inspira nos vendedores ambulantes que José dos Reis Carvalho pintou (acima) em Russas e Aracati de 1859. Ivo coloca seu vendedor de peixes, todavia, no contexto do litoral: entre falésias, dunas e lagoas à beira-mar (à esquerda).

 

Potes de água

Mulheres equilibram potes de barro na cabeça, levando água retirada das cacimbas deixadas quando baixa o leito do rio Acaraú, em Sobral (acima). Elas ganharam novas cores na obra As Três Marias, de Francisco Ivo (à esquerda).

 

Açudes

O Cedro, em Quixadá, foi o primeiro açude público do Brasil. Uma das primeiras grandes obras do governo brasileiro contra a seca. Começou a ser construído ainda no Império, como resposta à seca de 1877-1879, a mais devastadora da história do Ceará. Na época da visita da Comissão, o Cedro não existia. Porém, as estiagens - e as alternativas contra elas - estiveram entre as preocupações dos "científicos". Na imaginação de Francisco Ivo, eles visitam o Cedro, concluído no início do século seguinte. Ao fundo, imponente, a Pedra da Galinha Choca (abaixo). A representação dos membros da comissão ressitua personagens de quadro de José dos Reis Carvalho, pintados em aquarela e crayon (acima).

 

As senhoras e a igreja

José dos Reis Carvalho registrou as mulheres do Ceará na época e a forma como se vestiam. Também pintou a Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Outeiro da Praia, ainda incompleta - no atual Seminário da Prainha (à direita). Francisco Ivo colocou essas senhoras ao lado da velha igreja
(à esquerda).

 

Retirantes

José dos Reis Carvalho pintou a "família em viagem" (à esquerda). Em Êxodos, Francisco Ivo fez a fusão com outra obra do pintor da Comissão Científica e os colocou tendo ao fundo a igreja matriz de Aracati (à direita).

 

Acampamento

Reis Carvalho pintou o rústico acampamento da Comissão das Borboletas, em 1859 (à esquerda). Se em outros momentos Francisco Ivo faz fusões ou acrescenta contextos novos, aqui ele exclui o acampamento para se deter no lugar, onde pinta ingazeiro e acrescenta lírios (abaixo).

 

Penitentes e a Sé

José dos Reis Carvalho registrou a prática religiosa dos penitentes (abaixo). Francisco Freire Alemão descreve a prática em alguns lugares, como Lavras da Mangabeira e Crato. Carvalho os pintou em Sobral. "Porém, usei como fundo de minha tela, a fachada da Catedral de Fortaleza, pois queria realçar a presença da bela rosácea (que compõe esta linda Catedral, em estilo neo-gótico) e funciona como um grande olho da Igreja Católica", explica Ivo (à direita).

 

ESPECIAL

Nas duas últimas terças-feiras, O POVO publicou dois cadernos especiais do projeto Expedição Borboletas, que refez as rotas percorridas pela Comissão Científica de Exploração entre 1859 e 1861. A reportagem mostrou também novas descobertas e pesquisas hoje em curso que lançam novas luzes sobre os estudos de 160 anos atrás. O especial completo, com os cadernos especiais, o especial digital, vídeos e webdocumentário, você confere em especiais.opovo.com.br/borboletas

 

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