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Crônicas sobre leitura e afeto
Vida & Arte

Crônicas sobre leitura e afeto

Vidas atravessadas pela leitura. O escritor Saraiva Junior e a filha, a artista visual e poeta Raisa Christina, narram ao Vida&Arte as suas experiências com os livros
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Ilustração de Raisa Christina para a crônica
Foto: raisa christina Ilustração de Raisa Christina para a crônica "Livros são perigosos"

 

Livros são perigosos

Cresci rodeada pelos livros de meu pai, que adorava contar histórias. Os livros eram tão moradores da casa quanto meus irmãos e eu. Banhava-os a mesma luz que me acordava e não tardava a trazer o calor bem cedo pelas manhãs. Havia muita intimidade na presença deles e sempre redes armadas por entre as estantes, o que incitava a completa imersão de meu corpo em universos fantásticos. Por isso comecei a jornada de leitora pelos contos clássicos, as narrativas mitológicas e as coletâneas de horror e mistério.

Na escola, reservava a segunda metade do recreio para me recuperar da euforia e secar o suor das bochechas na companhia de O morro dos ventos uivantes, Madame Bovary, O vermelho e o negro. Durante a primeira metade do recreio, ia sentar na arquibancada da quadra poliesportiva, de onde podia olhar com sede e carinho as pernas dos meninos que corriam atrás da bola enquanto desfazia meu sanduíche a ligeiras dentadas.

O impacto das primeiras paixões se confundiu com a cena narrada num conto de Clarice Lispector em que a mulher adentrava o mar e daquela água salgada ia tomando grandes goles, mergulhando, até retornar à praia com cabelos de náufraga. Clarice me sussurrava, dentre outras coisas, que a vida precisava ser bebida em grandes goles, com urgência. Sua literatura, àquela época, foi um dos maiores acontecimentos de minha vida sentimental.

O interesse pelas pessoas crescia intensamente junto ao interesse pelos livros. Lembro com clareza o dia em que uma colega leu alguns versos de Mario Benedetti na aula de espanhol. Desde então, No te salves talvez tenha se tornado o poema que mais enviei aos namorados. Acho que nenhum me respondeu à altura. Seus versos foram me abrindo a muitas outras obras poéticas, até o dia em que, graças à Nina Rizzi, deparei-me com o devastador El árbol de Diana, de Alejandra Pizarnik. Desse encontro, não voltei ilesa.

Frequentava assídua as bibliotecas, os sebos e as livrarias. Gostava de estudar os livros, os rostos e as posturas da gente que ocupava aqueles espaços. Ainda hoje tenho o costume de observar como cada um desenvolve seu modo singular de curvar a coluna ou esticar-se para ler os títulos nas prateleiras mais distantes. Alguns ficam de cócoras, outros descem com as costas eretas empinando a bunda para o alto, uns se dispõem de viés, outros se apoiam em pequenos bancos e desaparecem.

Quando leio, também desapareço, vou para o lado de fora de mim e no entanto me embrenho, vulnerável a todas as experiências previstas e imprevistas pelas mais divergentes arquiteturas da língua e pelo espectro que as próprias palavras insinuam e não alcançam inteiramente. Dia a dia a leitura me toma pela mão e me conduz, no escuro, ao seio do perigo.

Raisa Christina, artista visual e poeta

 

Meus caminhos na leitura

Não sei com que idade exatamente aprendi a ler, mas sei que foi muito cedo. Apaixonei-me por gibis, o que se deu como uma febre viral, algo que quase toda criança pegava. Antes de ler Mickey, Pateta e o engraçado Zé Carioca, mamãe me narrava causos de Emília, Narizinho e outros habitantes do Sítio do Pica Pau Amarelo criados por Monteiro Lobato. Ela contava com o objetivo de me fazer comer os capitães de arroz com feijão e farinha que eram amassados por suas milagrosas mãos. Com um tempo, passou a me contar também romances de José de Alencar, Machado de Assis e Raquel de Queiroz.

Papai era um agricultor que gostava de ler jornais e revistas. Ele me incumbia a tarefa diária de comprar o jornal O POVO, que vinha no trem de Fortaleza e chegava a Senador Pompeu ao meio dia. Ele deixava o sítio rumo à casa em seu cavalo alazão, de tardezinha. Depois do jantar, dirigia-se à cadeira de balanço e eu lhe entregava o periódico. Dava uma olhada nas manchetes e me pedia para ler em voz alta três ou quatro artigos. Quando ele cochilava no meio da leitura, mamãe me deixava escapulir para a rua e brincar com os amigos. Mas houve uma noite em que papai dormiu e continuei lendo por vontade própria. Até hoje, quando leio, às vezes tenho a impressão de escutar sua respiração serena perto de mim.

Anos mais tarde, fui estudar em Fortaleza. Já havia lido Vidas marginais, de Moreira Campos; A mãe, de Máximo Gorki e Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Devia ter uns doze anos quando, acompanhado por minha mãe, adentrei pela primeira vez uma livraria. Ela se chamava Renascença e situava-se à rua Major Facundo, centro da Capital. Enquanto ela era atendida pelo balconista, minha cabeça rodopiava pelas estantes repletas de volumes que eu desconhecia. Indeciso, apalpava-os cheirando como se fosse devorá-los. Lia os títulos nas lombadas como quem tivesse encontrado um tesouro perdido. Quando ganhei de presente Cartas para um jovem poeta", de Rainer Maria Rilke, ingressei definitivamente no paraíso.

Em seguida, conheci a livraria Ciência e Cultura, do Sr. Aníbal Bonavides. Por essa época já era um viciado e passeava com desenvoltura na companhia de Gabriela, cravo e canela, Jorge Amado; Menino de engenho, José Lins do Rêgo; Vidas secas, Graciliano Ramos. Nas rádios, ouvia-se Beatles com I want to hold your hand e Roberto Carlos, Que tudo mais vá pro inferno. Nas sessões de Cine Arte, vi Casablanca no cinema Diogo e Sem destino no São Luiz. Ir ao Leão do Sul para comer pastel com caldo de cana fazia parte do roteiro afetivo no Centro.

A peregrinação pelas livrarias Renascença, Ciência e Cultura e Arlindo era própria de pessoas tímidas, discretas e com sede de conhecimento. No cenário político, nuvens escuras ainda compunham a paisagem. A leitura me armava para o bom combate. Quando a inquisição me prendeu e me jogou na fogueira, os livros também me ensinaram a reinventar a vida.

Saraiva Júnior, escritor

 

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