Fazendo fronteiras com o Centro Histórico, a Gentilândia, o José Bonifácio/ Fátima e o Otávio Bonfim, existe um "país" que pulsa ininterruptamente em Fortaleza. Boêmio e transgressor. Residencial e de comércio. Acadêmico e político. São muitos os olhares e costumes que traduzem e, mais que isso, seduzem quem nasceu, cresceu e ainda reside no Benfica, ou apenas faz dele um trajeto diário, quer seja por algumas horas, a caminho do trabalho ou do shopping, ou por pura fruição noturna/etílica nos fins de semana. Afinal de contas, esse "país" abriga até um estádio de futebol!
Descrever o bairro do Benfica é trazer de volta uma memória que teima em passar pelo viés do afeto. "O Benfica é um bairro que acolhe. É assim que me sinto por lá. Gosto do movimento boêmio, intelectual e subversivo de lá. Gosto da diversidade de pessoas que encontro e que convivem no mesmo lugar. É como se todos tivessem seu espaço pra ser", assim resume Ercília Lima, 38, nascida e criada no Jardim Iracema e Jardim Guanabara; hoje, residente na Cidade dos Funcionários. Nutricionista por profissão, a vivência por aquelas ruas a acompanha desde a época da adolescência.
"Comecei a estudar na Escola Técnica (atual IFCE), lugar que muito contribuiu para a pessoa que sou hoje, onde comecei a cantar (coral) e fiz amizades pra vida toda. Também trabalhei, anos depois, numa secretaria na Avenida da Universidade. E as memórias afetivas foram se acumulando ao longo dos anos: as calouradas, as manifestações políticas...", completa ela, que elegeu um local bastante especial em sua trajetória. "Ano passado comecei a cantar no Gentilândia Bar, onde ocorreu a estreia do meu show, Gira do Tempo, apresentado recentemente no Ciclo Carnavalesco de Fortaleza (com apresentações também na Praça da Gentilândia)", celebra.
Local que "sempre foi um comércio, um bar", segundo o atual proprietário, Júlio César Costa, 54, o Gentilândia Bar tornou-se um dos points badalados do bairro, assim como o Paraíba. Abrindo espaço para nomes locais, amadores e veteranos, a casa também acabou sendo uma espécie de "QG" para o bloco Hospício Cultural, a partir de ensaios abertos ainda no mês de dezembro. "Aqui era um bar-mercearia que era do Seu Luís Picas. Ele tinha um garçom, que era o Seu Manelzinho, passou-se um tempo e o garçom ficou com o bar", explicou Júlio, que também foi cria da extinta Escola Técnica, conheceu a esposa na Praça da Gentilândia e, hoje, é morador de lá.
A "cultura boêmia de boteco", segundo ele, tem sido a marca registrada do GB. "De início, colocávamos cantores para tocar, apenas voz e violão. Foi num desses momentos que eu conheci o Gildomar Marinho e o Charles Wellington, que são músicos e parceiros. Após um grupo de whatsapp, começamos a selecionar os cantores que viriam a se apresentar aqui. Então, hoje, a programação vai de terça a domingo e, quanto mais oportunidade nós pudermos dar, melhor para os artistas", reconhece. A historiadora Cícera Barbosa, 34, por sua vez, traz à tona outros estabelecimentos que atualmente permanecem somente na memória.
"Ter amadurecido pelas ruas e por baixo daquelas árvores fez com que eu tivesse a melhor acolhida. Já ter estado na parede do bar do Seu Chaguinha (com as portas fechadas desde 2015), receber o abraço da Marluce no Seu Assis, as cervejas mais geladas, o churrasquinho mais barato e mais gostoso, foi a certeza de sempre encontrar amigos, mesmo que você apareça sem combinar com ninguém", define ela que, durante o Carnaval, acompanhou blocos como o Luxo da Aldeia e outras atrações pelo bairro. "Tenho uma relação histórica de afeto com o Benfica. Frequento há cerca de 20 anos e meu primeiro beijo, os grandes amores, idas e chegadas de viagens inesquecíveis foram lá", garante.
"Respirar o mesmo ar que todos que frequentam a UFC, como diz a brincadeira em paródia com a música do Caetano Veloso: 'Alguma coisa acontece no meu coração, quando cruzo a 13 de Maio com a Avenida da Universidade", conclui Cícera. Ercília Lima, por sua vez, faz uso dos versos de uma outra canção para expressar sua relação particular com o Benfica. "Como escreveu Raimundo Cassundé, um poeta amigo benfiquiano: 'Quando eu me sinto down e nada justifica, procuro um happy hour nos ares do Benfica' Como não amar esse bairro tão presente na minha história?".
Mas, como em todo “país”, o Benfica não funciona somente à noite. É ao longo do dia que moradores saem de suas respectivas casas e vão ao encontro das calçadas, supermercados, pracinhas e o que mais o bairro possa oferecer. Comércios mais antigos dividem o espaço com feiras de frutas e verduras (aos sábados e domingos, na conhecida ‘Pracinha das Comidas’) e eventos mais pontuais, como o Corredor Cultural Benfica (ocupando diversos equipamentos pelos arredores) e as feiras Negra e Agroecológica.
Numa rápida passada de olho, a Avenida da Universidade abraça locais múltiplos, como é o caso da Igreja Nossa Senhora dos Remédios, Pró-Reitoria e Reitoria da UFC, Museu de Arte da UFC, Centro de Humanidades e Casas de Cultura, além de abrigar a sede de alguns partidos políticos e de agremiações, a exemplo do Maracatu Solar. Mais adiante, a Casa Amarela Eusélio Oliveira, Biblioteca Municipal Dolor Barreira, Associação dos Docentes da UFC (Adufc), a esquina dos bares The Lights e Gato Preto, Teatro Chico Anysio, Teatro Universitário, Toca do Javali, Conservatório de Música Alberto Nepomuceno...
Entrando para o 12º ano de residência no bairro, a jornalista Raquel Chaves relata sua experiência pelo Benfica: “Uma das coisas que mais gosto e que tento refazer, apesar do medo (comum a todos os bairros e a praticamente todos os fortalezenses), é o caminhar sem perder a capacidade de flanar, de observar. Porque ainda há as conversas cedinho nas calçadas, os velhinhos solitários que ficam a observar quem passa só pra ganhar um ‘bom dia’ e ver o movimento – pelo menos é a impressão que tenho de alguns, que parecem esperar por esse ‘bom dia’ dos transeuntes desconhecidos, sabe? É gostoso fazer isso, pra quem dá e pra quem recebe”, descreve.
Sua rotina é, praticamente, feita toda a pé e, por conta do tempo de convivência, já consegue identificar algumas figuras bem peculiares do bairro. “Tem o Roberto Carlos, que parece onipresente e (quase) ninguém sabe o nome dele. Mas é o Roberto Carlos, porque é clone, porque se apresenta assim nas ruas e nos palcos. Você o vê de manhã na calçada de casa tocando violão, comprando fruta no mercadinho à tarde ou apressado na Praça da Gentilândia, à noite, atrás do ônibus indo pra Rodoviária e pedindo informação, mesmo sendo morador há anos”, completa Raquel.
E segue: “Tem o senhorzinho da limpeza municipal que está sempre carregando o mundo nas costas vestido de laranja bem cedinho na pracinha da Gentilândia, dividindo espaço com os moradores da praça, o dono da banca, os cachorrinhos e gatos, os guardadores de carro, os que têm fome, os que têm pressa. E os que não a têm também”, lembra Raquel. Van Régia, 43, proprietária da Culinária da Van, endossa as outras opiniões. “Como todos os bairros, a gente se sente insegura. Não tem como não se sentir, mas eu ando, sim: saio do restaurante, frequento os bares do Benfica, o churrasquinho, o Gentilândia Bar... E, geralmente, vou a pé pra casa”.
Quanto à sua relação com o bairro... “É a melhor possível. Sou muito amada aqui no meu bairro. Eu amo muito as pessoas, a programação, apoio tudo... Fora que o Benfica é meu bairro desde a adolescência, os primeiros namorados... É o bairro da minha vida. Não teria nem como eu trabalhar e não ter a oportunidade de morar aqui também. Já estou sendo comerciante e morando aqui há quase cinco anos”, afirma Van.
“(Estar no Benfica) é certeza dos livros raros e mais interessantes nas suas livrarias Lamarca e Artes&Ciência, ou ainda as movimentações artísticas da Cidade”, completa Cícera. Raquel Chaves, por fim, traça uma linha entre o Benfica e as cidades interioranas. “Para além da Universidade, é pra mim um bairro com jeito de interior: sabe aquela coisa de cidadela em que as referências são a igreja, a praça, a delegacia? Pois para além da UFC, tem o mercadinho, as duas praças, o bar preferido, o pet shop, a churrascaria do galeto do domingo, o espetinho da calçada, a farmácia, a Igreja...”, enumera. E aí, vamos ‘benficar’??