"O que vemos só vale — só vive — em nossos olhos pelo que nos olha". Na obra O que vemos, o que nos olha (1998), o filósofo, historiador e crítico de arte francês Georges Didi-Huberman insinua que a visão é um sentido experimentado por meio da relação estabelecida entre quem olha e quem é visto. Como "o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois", numa cisão do ver que defende inelutável, não apenas observamos imagens — somos também desvendados por elas. Neste binômio visibilidade/invisibilidade, a fotografia emerge como um olhar em partilha. Nas telas dos celulares, nas páginas dos periódicos, nos álbuns de família, nas paredes de galerias: imagens são memórias sociais, constituem histórias.
Numa fina costura entre literatura e fotografia — ou, mais precisamente, num enlace quase que profano entre palavra e simulacro —, o Museu da Fotografia Fortaleza inaugurou duas novas exposições de longa duração: O olhar não vê. O olhar enxerga e Não danifique os sinais. A curadoria das mostras é assinada pelo escritor, roteirista e editor independente Diógenes Moura, que mergulhou durante quatro meses no abissal acervo de quase 3 mil peças do MFF para apresentar ao público cearense muitas das obras ainda não expostas da Coleção Paula e Silvio Frota. O casal de colecionadores fundou a galeria privada em 10 de março de 2017, há exatos três anos. "A exposição anterior era muito mais leve e a visão do Diógenes é densa, o que realmente mexe muito com as pessoas. Ninguém pensava em alterar a coleção permanente, mas agora no aniversário do museu resolvemos mudar — inclusive o nome, pois não é mais permanente e sim 'de longa duração'. Nós pretendemos ter visões diferentes anual ou bianualmente", pontua Silvio.
"As duas exposições tratam das diversas formas de humanidade; do corpo, da alma, da natureza da terra, da natureza do homem. Na minha cabeça, é uma exposição só", ressalta Diógenes Moura. "O olhar não vê. O olhar enxerga — tem uma respiração entre uma frase e outra. É quase um pedido de silêncio diante das imagens para que se possa ver essas imagens, entender essas imagens. A fotografia é definitiva, ela é diferente da pintura, da escultura, da gravura: ela tem um instante guardado dentro, que pode ser perplexo, pode ser suave, pode ser tudo. Nós entramos numa velocidade por causa da Internet, que tem apenas 20 anos, e vemos muitas imagens o tempo inteiro, nas redes sociais, no Instagram, no Facebook... Essas exposições são o contrário disso. Ou você tem um tempo diante de cada imagem, ou você se perde numa história", complementa. O curador ainda alerta: "Sem ler os textos, não há exposição".
Entre ensaios já consagrados, iconografias religiosas, retratos, corpos, paisagens e experimentos contemporâneos com manipulação digital de imagem, as duas exposições reúnem cerca de 370 obras em dois pavimentos do MFF. São trabalhos de artistas nacionais e estrangeiros — "é algo sem nenhum tipo de preconceito", ressalta o curador. Acompanhando o O POVO numa visita guiada, Diógenes Moura detalhou o processo de criação das mostras. O olhar não vê. O olhar enxerga ocupa o térreo. A foto que recebe os visitantes é do carioca Celso Oliveira (Quem Somos Nós, 1990). "Para mim, a fotografia de Celso Oliveira é tão importante quanto a de Cartier-Bresson. É só uma questão de tempo, País onde a gente vive e oportunidades", pondera Diógenes. Na parede, a bengala da estátua de Padre Cícero é abraçada com firmeza por braços sem rosto, oculto nas sombras atrás do clérigo. "O olhar não vê".
"Num fluxo redondo de visitação das duas exposições", como Diógenes recomenda ao público, a mostra térrea se inicia com retratos em planos fechados, abertos, fragmentos da vida cotidiana, reflexos de cidades e se finda em paisagens. Entre os registros de pausa e reflexão, distribuídos numa montagem intencionalmente não linear, destaca-se a imagem do fotógrafo e cineasta húngaro Thomaz Farkas capturada pelo piauiense José de Medeiros — considerado o "poeta da luz". Ao lado deste contraluz, um poderoso experimento de saturação, explodem em cores rotinas e intimidades de mulheres trans fotografadas pela carioca Ana Carolina Fernandes. "Há vários dípticos. Não são imagens como varejo, é raro uma imagem sozinha. O objetivo é que o visitante conheça uma sequência", destaca ainda o curador ao ressaltar a formação de público proposta pelo museu.
Nesta releitura do acervo — que abriga obras do documental Sebastião Salgado ao erótico Nobuyoshi Araki —, os outrora ícones ganham reconfiguração no espaço. As obras do francês Henri Cartier-Bresson repousam nas paredes entre luz e sombras, pretos e brancos, André Cypriano e Boris Kossoy. Como nem só de Mona Lisa vive o Louvre, "para mim, as imagens ícones são feitas para cegar as pessoas", sugere Diógenes. A Menina Afegã, de Steve McCurry, avizinha-se das fotografias de Daniel Chicault e Mário Cravo Neto. "Ela está tão prestigiada quanto a imagem do menino negro logo ao lado que olha do mesmo jeito que A Menina Afegã olha. É uma pirâmide com Mário Cravo no meio". Os olhares crivam o espectador o tempo inteiro: de Cindy Sherman — conhecida pelos autoretratos conceituais — a Aldemir Martins na foto de Chico Albuquerque, tudo culmina no fotógrafo esloveno cego Evgen Bavcar.
O corpo, que no térreo encontra auge com Hirosuke Kitamura, Miguel Rio Branco e Bauer Sá, é transe na exposição Não danifique os sinais. "O título eu ganhei de presente. Na primeira vez que fui para Água Preta, com a expedição Brasil Profundo, a gente parou para comprar castanha e estavam escavando a obra de um hotel ao lado. Subi a encosta para observar e tinha uma placa com os dizeres 'Não danifique os sinais'. É um chamado de atenção", relembra o curador. Tudo no primeiro andar do MFF é um alerta — é neste ínterim que o olhar autoral de Diógenes Moura se consolida. "Entramos na guerra", garante o curador.
"Tudo em nós é abismo, tragédias anunciadas, mentiras estrategicamente diluídas. De Mariana a Brumadinho, as duas a mesma coisa, soterrando corpos, vozes, história, memória, passado, religiosidade, futuro. De um mundo que não está com os dias contados, aos imigrantes com as mãos abanando, implorando por um naco de existência, tudo será guerra enquanto o homem pensar. Por aqui, a injúria é diária", escreve Diógenes nas paredes da exposição. Num fôlego, imagens do fotógrafo Victor Dragonetti, o Drago, escancaram as ruas do País nos protestos de 2013. Fogo. "Acima das fotos, um tubo de luz torna a sequência quase que uma vitrine. Você só enxerga quando toma distância", aponta o curador. As paredes se enchem com uma impressionante continuidade fotográfica de Maurício Lima em guerras. Sangue. Robert Capa e Che Guevara a tudo observam.
Os anos de chumbo, período mais repressivo da ditadura militar no Brasil, assombram uma parede com registros — cada vez mais urgentes e necessários — de Orlando Brito e Juca Martins. A natureza do homem transfigura-se na natureza da terra com uma ampla seleção de Rogério Assis, o primeiro fotógrafo a ter contato com o povo indígena Zo'é em 1989. As imagens da Serra Pelada gravadas em peças de acrílico parecem saltar. "Do sertão que dói, por dentro e por fora", os registros costuram as cabeças decepadas do bando de Lampião e o cangaço rasga mortalha. "Para 'vê-los', o fotógrafo fez um pacto. Cada imagem vale uma vida. Ou se cumpre ou a bala come", descreve Diógenes. Bem disse o mineiro Guimarães Rosa: "Deus mesmo, quando vier, que venha armado!".
"A gente precisa falar dessas coisas num País onde não se fala de tristeza, onde não se fala de morte, onde as pessoas vão às ruas pedir a volta da ditadura porque não sabem o que foi. É assim que eu vivo da hora que eu acordo até a hora que eu deito", finaliza Diógenes acerca do processo curatorial. "Eu sempre me interessei pelo Brasil. Nós temos artistas incríveis, o nordeste brasileiro pulsa. Pouco me interessam trabalhos da Europa, dos Estados Unidos. O que me interesse é o Brasil, é aqui que eu vou viver".
Hirosuke Kitamura
Lágrimas Negras, 2005. Nascido em 1967 em Osaka, Japão, Hirosuke Kitamura chegou ao Brasil em 1990 como estagiário de intercâmbio e atualmente reside em Salvador (BA).
"É uma série linda, feita nas ruas de Salvador com prostitutas. O Kitamura mora na capital baiana há cerca de 20 anos. Vemos muito Mario Cravo e Miguel Rio Branco nessas imagens", elucida Diógenes Moura.
Rogério Assis
Série Zo'é, Erepecuru, PA, 2009.
Zo'é registra um raro encontro: nascido em Belém (PA), Rogério Assis foi o primeiro fotógrafo a ter contato com o povo indígena Zo'é em 1989.
"No corpo dela há uma finalização nossa do envelhecimento, uma situação sem pudor e sem falsa moral — que os indígenas não têm — e nós estamos cada vez mais à beira desse perigo, dessa moral fajuta. Tem uma ligação forte com a natureza", detalha Diógenes Moura.
Juca Martins
Prisão de travesti no Centro de São Paulo. São Paulo, SP, 1980. Manoel Joaquim Martins Lourenço, Juca Martins, nasceu em Portugal em 1949 e mudou-se com sua família para São Paulo em 1957. Trabalhou como repórter fotográfico nos principais jornais e revistas do Brasil durante a ditadura militar. "Juca Martins registrou os anos de chumbo no Brasil, onde as travestis sofriam uma repressão densa. É uma foto simbólica, onde a polícia disfarçada prendeu uma travesti e a jogou no chão. É uma cena muito emblemática para tudo, de lá até agora — que não mudou muito", pontua o curador Diógenes Moura.
Pablo Di Giulio
Evgen Bavcar, 2003. Nascido em Buenos Aires, Argentina, em 1957, Pablo Di Giulio reside no Brasil desde 1964. Colaborou com as revistas Vogue, Galeria, Travel In, Marie Claire, Gula e Playboy. Na imagem, registrou o fotógrafo esloveno naturalizado francês Evgen Bavcar. Cego, Bavcar possui uma relação onírica com a fotografia.
"As exposições, para mim, têm tudo a ver com o Bavcar", explica Diógenes Moura. No texto situado abaixo da foto de Pablo Di Giulio, o curador reproduz as palavras do esloveno: "Eu fotografo o que imagino. Os originais estão dentro da minha cabeça. (...) Minhas imagens são frágeis. Eu nunca as vi. Mas sei que elas existem".
O olhar não vê. O olhar enxerga. e Não danifique os sinais
Quando: de terça-feira a domingo, de 12h às 17h. Exposições de longa duração
Onde: Museu da Fotografia Fortaleza (Rua Frederico Borges, 545, Varjota)
Informações: (85) 3017-3661 e museudafotografia.com.br
Gratuito. Censura livre