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Livro apresenta mulheres que não se calaram em meio à Ditadura
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Livro apresenta mulheres que não se calaram em meio à Ditadura

"Heroínas desta História", livro lançado pelo Instituto Vladimir Herzog, faz uma homenagem ao protagonismo das mulheres durante a Ditadura Militar
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Elzita Santa Cruz, uma das perfiladas do livro (Foto: Acervo: Rosalina Santa Cruz)
Foto: Acervo: Rosalina Santa Cruz Elzita Santa Cruz, uma das perfiladas do livro

Quantos nomes femininos são lembrados quando a história da Ditadura Militar no Brasil é contada? Marli Pereira Soares estava com a família quando a polícia invadiu sua casa para torturar o irmão, Paulo, em um quarto. Horas depois de comemorar o Dia das Crianças com os sobrinhos, foi morto com treze tiros na cabeça. Damaris Lucena viu seu marido, Antônio, ser carregado por 15 homens fardados e nunca mais teve a chance de encontrá-lo. Todos os filhos de Elzita Santa Cruz, falecida em 2019, enfrentaram o regime. Um deles, Fernando, desapareceu. Até hoje não há informações concretas sobre sua situação.

Essas mulheres que perderam familiares durante o período representam as feridas ainda abertas de milhares de brasileiros. Elas, porém, transformaram o sofrimento em resistência. Por meio da dor que carregam, lutam contra o silêncio de vidas que não são lembradas. Para resgatar a memória das figuras femininas durante a ditadura, o Instituto Vladimir Herzog lançou o livro "Heroínas desta História", que faz perfis de 15 mulheres que viveram durante o período de 1964 a 1985.

O nome da obra não foi um consenso entre as pessoas que contaram suas trajetórias. Elas não conseguem se considerar "heroínas". Afinal, acreditam que fizeram apenas o que deveria ser feito. "A gente não fala dos heroísmos distantes, que tem qualidades que as afastam mais que as aproximam. É o heroísmo cotidiano, como o de Dona Elzita, que se recusou a sair da sua antiga casa para caso seu filho soubesse onde encontrá-la", conta Carla Borges, colaboradora do instituto e uma das organizadoras do livro.

Colocar em destaque as mulheres que batalharam - e continuam batalhando - pela memória, pela verdade e pela justiça é o principal objetivo. "Elas significam resistência e perseverança. Significam não desistir, não abaixar a cabeça, não se submeter ao papel colocado para elas", considera. As perfiladas são ainda mais importantes para o público feminino, que foi silenciado em tantos momentos históricos. Por isso, todo o processo de produção foi realizado e concebido por mulheres.

Este domingo, 15 de março, marcou os 35 anos do fim da Ditadura Militar. Mas quase três décadas depois, a população brasileira ainda é escassa de informação acerca dos verdadeiros acontecimentos. "A gente está vivendo um momento terrível em que a memória está sendo atacada, em uma tentativa de manipulação explícita do passado, com um ataque direto às mulheres. Elas, assim como nós, jornalistas, também foram chamadas de loucas, interesseiras. Se elas não desistiram, por que a gente deveria desistir?", questiona Carla Borges.

Abandonar essa luta constante pela história não é uma possibilidade para Tatiana Merlino e sua família. Hoje jornalista de direitos humanos e uma das organizadoras do livro, busca resgatar as informações sobre seu tio, Luiz Eduardo Merlino, assassinado sob o comando de Carlos Alberto Brilhante Ustra. No entanto, não está sozinha na batalha. Age sempre com a ex-companheira do seu parente, ngela de Almeida, uma das perfiladas.

"Minha avó lutou contra a União, para responsabilização do assassinato. Em 1995, morreu sem nenhum tipo de reparação do estado. Eu dei continuidade junto com minha mãe e a ngela", relata. Agora, elas recorrem pela terceira vez na justiça em busca de uma resposta.

"Resgatar a história dessas mulheres é fundamental porque estão na luta há décadas com histórias inviabilizadas. Tivemos uma justiça de transição muito tardia, décadas depois da ditadura", afirma. Segundo Tatiana, a Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2011 para investigar as violações dos direitos humanos durante o regime militar, foi extremamente importante. O colegiado, porém, teve diversas limitações na pesquisa.

"Acho que é fundamental lançar esse livro nesse momento histórico que estamos vivendo. Elas são heroínas. Mais ainda nesse contexto que vivemos de negacionismo da ditadura militar, de revisionismo histórico, com um presidente que não só é conivente, como defende", sustenta Tatiana Merlino. Para ela, conhecer mais sobre esse acontecimento é um direito de todos. "Não é só a minha história, é a nossa história", expressa.

 

Quem são elas?

Ana Dias

Baiana, teve o marido assassinado pela Polícia Militar.

Angela Mendes de Almeida

Paulistana, militante. Seu companheiro, Luiz Eduardo Merlino, foi morto no DOI-CODI.

Carolina Rewaptu

Indígena. Seu povo Marãiwatsédé foi expulso da terra em que vivia.

Clara Charf

Ucraniana e judia. Seu companheiro, Marighella, foi morto em 1969.

Clarice Herzog

Paulista. Lutou durante décadas pela verdade sobre a morte de seu marido, o jornalista Vladimir Herzog.

Crimeia de Almeida

Carioca, era uma das integrantes da Guerrilha do Araguaia. No DOI-CODI, foi torturada, mesmo estando grávida de seis meses.

Damaris Lucena

Maranhense, viu o marido ser torturado e morto. Foi presa durante dias. Exilou-se em Cuba, a convite de Fidel Castro.

Diana Piló de Oliveira

Belo-horizontina, perdeu o filho, Pedro Alexandrino, guerrilheiro. Por anos, ela escreveu cartas de amor e de saudades para ele.

Egle Vannucchi Leme

Paulista, perdeu o filho, Alexandre, que foi sequestrado pelo DOI-CODI e nunca mais teve a chance de voltar pra casa.

Elizabeth Teixeira

Paraibana, militou pelas Ligas Camponesas. Seu marido foi assassinado em uma emboscada.

Elzita Santa Cruz

Pernambucana, buscou uma resposta para o desaparecimento do filho, Fernando. Faleceu aos 105 anos sem resposta.

Eunice Paiva

Italiana e paulista, foi presa no DOI-CODI com a filha. Seu marido, o deputado Rubens Paiva, desapareceu.

Ilda Martins da Silva

Paulista, foi torturada no Dops. Seu marido, Virgílio, foi assassinado.

Maria José Araújo

Alagoana, perdeu seu filho, Luiz, após ele ter sido levado ao DOI-CODI.

Marli Pereira Soares

Carioca, perdeu o irmão, Paulo, quando policiais entraram na sua casa e o torturaram.

 

Heroínas desta História

Organizadoras: Tatiana Merlino e Carla Borges

Ed. Autêntica

400 páginas

Quanto: R$59,80

 

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