É possível ensinar a ser poeta? Hilda Hilst diria que não. A poesia não pode ser lecionada porque o ato de fazê-la é tão íntimo que precisa nascer de uma necessidade. Ela é, por si só, uma compulsão, uma tentativa eterna de transformar sentimentos em palavras. "Acredito que a literatura só tem sentido se o essencial se manifesta. A pessoa escreve porque tem alguma coisa importante para passar para o outro", escreveu em carta para a editora Brasiliense, com o objetivo de publicar seu livro O Caderno Rosa de Lori Lamby.
Foi essa (co)dependência pela escrita que fez a autora continuar, mesmo com pouco reconhecimento enquanto estava viva. Essa sina, entretanto, reconhecia e aceitava, porque sabia que obras importantes se tornavam famosas, principalmente, depois da morte do artista. Esse pensamento foi mostrado também em suas correspondências, divulgadas em 2015 pelo projeto Ocupação Hilda Hilst, do Itaú Cultural, e agora novamente disponibilizado em formato online.
Sua trajetória começou cedo, talvez, por causa de sua infinita inquietude. "Como queres que eu não pergunte se tudo se faz pergunta?", questionou em Kadosh, coletânea de quatro textos. Sua primeira obra, Presságio, foi feita quando tinha apenas 20 anos e reúne um conjunto de poemas que começariam a definir seu estilo.
No ano seguinte, já publicaria outro livro, com o nome Balada de Alzira. Durante toda a vida, escreveu mais obras que a marcaram para sempre na literatura brasileira. Amavisse, Do desejo, Exercícios e Odes Mínimas foram alguns dos títulos. "Por que me fiz poeta? Porque tu, morte, minha irmã, no instante, no centro de tudo o que vejo", escreveu em versos, em 1980.
O amor, a morte e o fazer poesia percorreriam diversas produções. Sem nunca perder suas perguntas, que moldaram a forma de ver o mundo, traduziu as aflições e as frustrações inerentes ao ser humano. "O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas: 'meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas'. Irmão do meu momento: quando eu morrer uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo: MORRE O AMOR DE UM POETA. E isso é tanto, que o ouro não compra, e tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto não cabe no meu canto", contempla Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, escrito durante a Ditadura Militar.
Não se restringiu, porém, apenas às obras poéticas. Ainda contribuiu para a dramaturgia, com oito peças. Entre elas, estão A empresa (a possessa), O novo sistema e O rato no muro. Escritos em um período de dois anos, entre 1967 e 1969, mostraria a sua capacidade de construir diálogos e ambientações tão imagéticas. Destacou-se também em formatos como a prosa. Além de crônicas publicadas, principalmente, no jornal Correio Popular, aventurou-se na ficção. Em uma mistura de gêneros, demonstrou sua versatilidade e domínio de linguagens.
Com um legado extenso na literatura, faleceu aos 73 anos, em 2004. Sua voz ecoa até hoje por meio do Instituto Hilda Hilst (IHH), criado depois de seu falecimento com o objetivo de preservar sua memória e manter a Casa do Sol, onde morou por anos. O local é espaço de incentivo à produção cultural do País. Seu legado também está exposto no site o Itaú Cultural, por meio dos arquivos da Ocupação Hilda Hilst. "Minha vontade é a de colocar cada vez mais poesia neste meu espaço, para encher de beleza e de justa ferocidade o coração do outro, do outro que é você, leitor", escreveria em crônica publicada em 1994.
Documentário
Hilda Hilst construiu para si um espaço quase semelhante a um monastério para viver em Campinas, interior de São Paulo. Estava em uma grande distância do convívio urbano, mas não deixou de se encontrar com os amigos e fazer do local reduto de boemia. Lygia Fagundes Telles e Caio Fernando de Abreu eram frequentadores regulares do lugar.
Durante os anos em que morou na denominada Casa do Sol, passou por um período de tentativa de contato com os mortos. Entre 1974 e 1978, gravou conversas em que tentava fazer uma ligação entre o mundo real e o espiritual. Buscou diálogo com pessoas famosas, como Vladimir Herzog, jornalista morto na Ditadura Militar, e Franz Kafka, autor de A Metamorfose e O Processo.
"Gostaria tanto de ouvir a fala de alguns de vocês, vocês que são meus amigos. Hilda pedindo contato. Vocês mortos, vivem?", questiona em uma das gravações. Um dos trechos de seu diário, disponibilizado pelo Instituto Hilda Hilst, fala sobre o medo que ela tinha da morte. "Tenho pensado na morte sem parar. Tenho medo da morte. Fiz toda aquela experiência com os gravados e na realidade tenho quase a certeza de uma vida após a morte. Li tanto sobre esse assunto, gente, mas temo, temo esse horror que é o não ser", confessa.
Em busca de uma maneira para resgatar esse momento da artista, a diretora Gabriela Greeb retorna ao lugar que a poeta morou para reconstruir sua memória. Seu documentário Hilda Hilst pede contato explora os limites entre a ficção e a realidade.
O longa-metragem durou dez anos para ser produzido, principalmente por causa da necessidade de aprofundamento na história da autora.
Diversos elementos imaginários são colocados em cena, intercalados com depoimentos sobre a poeta, entre eles, o de Jorge da Cunha Lima, jornalista e escritor, e Olga Bilenky, amiga da poeta.
Da morte. Odes mínimas
Perderás de mim
Todas as horas
Porque só me tomarás
A uma determinada hora.
E talvez venhas
Num instante de vazio
E insipidez.
Imagina-te o que perderás
Eu que vivi no vermelho
Porque poeta, e caminhei
A chama dos caminhos
Atravessei o sol
Toquei o muro de dentro
Dos amigos
A boca nos sentimentos
E fui tomada, ferida
De malassombros, de gozo
Morte, imagina-te.
Poema publicado em Da morte. Odes mínimas (1980)
Ocupação HIlda Hilst
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