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Que legado as lives de artistas - popularizadas nestes dias - deixam para o mercado da cultura após a pandemia?
Vida & Arte

Que legado as lives de artistas - popularizadas nestes dias - deixam para o mercado da cultura após a pandemia?

Em menos de dois meses, as formas de consumir música mudaram bastante. O que era feito em bares, shows ou festivais foi adaptado para as redes sociais. E esse cenário também está mudando
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Hoto Jr. acredita que a classe artística precisa se unir para passar por esse momento (Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Hoto Jr. acredita que a classe artística precisa se unir para passar por esse momento

No começo de março, a indústria cultural se movimentava de forma habitual. Shows sendo feitos, bandas tocavam em bares, programação de espetáculos, o cinema lançava novas produções... Esse cenário, que acontecia tão naturalmente, teve que ser reformulado por completo em poucos dias devido à pandemia do novo coronavírus.

O público pagava pela arte e esta, por sua vez, era quase sempre uma experiência física, de contato direto entre obra e plateia. Entretanto, a lógica foi reformulada às pressas para dar conta de uma instabilidade econômica e social. Mas, como mudar um mercado que seguia o mesmo formato há décadas?

Foi assim que artistas surgiram com as transmissões ao vivo nas redes sociais. O que antes era usado para contato mais direto com fãs, tornou-se a principal ferramenta para escoar a produção artística. No início, os meios técnicos eram amadores. A pouca qualidade de vídeo e som iniciada no Instagram foi evoluindo até o atual momento, com apresentações de alto desempenho, principalmente, no Youtube.

"No Instagram, há a limitação de uma hora para live. Você tem que desligar e entrar de novo. Se você não encerrar antes, você perde o conteúdo. Também não é possível salvar para depois as pessoas verem. O Youtube se tornou a plataforma mais apropriada para isso", afirma Karine Karam, professora de pesquisa do consumidor da Escola Superior de Propaganda e Marketing, no Rio de Janeiro (ESPM Rio). Essas produções exigem menos capital para realização do que os shows presenciais, mas a maneira de fazê-las continua se transformando diariamente.

"Quando a gente desloca o entretenimento da rua para casa, a gente demanda mais conteúdo. E os artistas vão ao encontro dessa necessidade. Na dificuldade de fazerem shows, live é uma oportunidade. Virou um evento. As pessoas abrem um vinho, botam uma cerveja para gelar e assim vai", destaca Karine. Com o isolamento social, a população recorreu à arte não só para se divertir, mas para encontrar novas formas de conexão.

Esse fato pode ser analisado em números. Apenas na terça-feira, 21, lives nacionais aconteceram simultaneamente durante a noite. O cantor Nando Reis tocava para um público de aproximadamente 500 mil pessoas, enquanto a dupla Sandy&Junior teve mais de duas milhões. As arrecadações de alimentos para doações nesses shows também chegam a toneladas em horas.

O fenômeno das transmissões tem acontecido, principalmente, como uma maneira de unir por meio da arte todos aqueles que estão em casa. "Agora, esse consumo está sendo um pouco mais valorizado. Ninguém aguenta ficar 24 horas vendo só desgraça na televisão. Mas é um consumo mais rápido, sobretudo no mundo da música. Antes você tinha que se deslocar até um lugar para ver uma banda local. Agora não. Você está na rede, você está vendo milhões de artistas na sua mão, de graça", pontua Caike Falcão, músico e produtor.

A programação gratuita, porém, mantém um problema que não é novo: a falta de apoio para a cultura local. "No fundo, para ganhar dinheiro, tem que ter audiência. O pequeno não tem a chance de conquistar uma audiência tão massiva", relata a professora Karine Karam. Apresentações de cantores sertanejos, por exemplo, têm milhões de espectadores e contam com patrocinadores.

Essa é a mesma visão de Ivan Ferraro, produtor cultural e fundador da Associação dos Produtores de Cultura do Estado do Ceará (Prodisc). "Os grandes artistas sempre tiveram mais patrocínio, sempre venderam mais ingresso. Isso não mudou em nada. É necessário ainda avaliar esse novo modelo. Mas o público também tem que entender que tem que contribuir de alguma forma", opina.

Como divulgação dos artistas locais, colaborações estão sendo feitas, principalmente, entre os músicos. O objetivo é ganhar mais espaço na indústria e na internet. "Se você olhar para o mercado sertanejo, isso já era feito. Essa ideia está começando a se pulverizar em outros meios. Isso é super importante, em qualquer momento. Por exemplo, se a gente faz algo juntos, você ganha meu público e eu ganho o seu", comenta Caike.

Para Ivan, entretanto, é necessário que a sociedade se conscientize acerca dos profissionais que estão sofrendo financeiramente por causa dessa gratuidade. "É entender que essa colaboração precisa, em algum momento, começar a ser exigida. O consumidor não está mudando. Ele ainda está consumindo sem pensar que, para aquilo que está vendo na internet de graça, tem alguém que está trabalhando", diz.

A circunstância atual criou uma instabilidade no mercado. Dos grandes aos pequenos artistas, todos cancelaram apresentações e outros eventos na programação. Por causa disso, a classe artística está se reunindo para apoiar uns aos outros. Vaquinhas e shows online são alternativas de atenuar uma consequência ainda sem perspectiva de acabar.

Não são todos os profissionais que estão conseguindo se adaptar. O teatro, por exemplo, é uma atividade que pressupõe um público e um contato. "Tem iluminador, técnico, toda uma equipe que está sendo prejudicada. Tem gente precisando de comida. Estamos começando a ver que as pessoas estão se solidarizando, arrecadando recursos", indica Ivan.

 

O que vem depois?

Não é possível prever o que acontecerá com a indústria musical após a quarentena. Algumas situações, porém, começam a ficar evidentes. Em um movimento quase massivo, as pessoas buscam mais formas de entretenimento para se conectar. "Uma coisa que ficou muito clara é a nossa necessidade por arte, para ocupar nossa mente, para trazer uma paz de espírito. E acho que talvez continuemos nesse estilo de consumo à distância", diz Gabriel Aragão, da banda Selvagens à Procura de Lei.

Para a geração do cantor, estar online já era um costume enraizado. Do Myspace ao Instagram, artistas já procuravam estar mais perto do público. Porém, segundo ele, o que mais irá mudar é a forma de produzir. Gabriel, que já tem experiência de gravação à distância, acredita que muitas atividades poderão ser feitas por meio da internet.

Nem todos tinham essa visão de serem ativos nas redes sociais. "Acho que metade da turma não acreditava ou não se rendia à internet. Isso, de certa maneira, deu uma sacudida nos trabalhadores autônomos", opina Hoto Jr., percussionista e professor.

De acordo com Hoto, o aprendizado maior é a organização para o futuro. "A indústria musical é um comércio como qualquer outro. A diferença nesse período específico é que nós fomos os primeiros a parar e seremos os últimos a voltar a funcionar de verdade".

Para Marcelo Froés, produtor e dono da gravadora Discobertas, o atual cenário mudou a relação do artista com seu público. "O artista está se despojando de muita coisa para se comunicar com o público. Aprendendo a fazer live, comunicação direta sem tanto suporte de técnicos, edição, todos aqueles funcionários e personagens do mercado que assessoram". Ao mesmo tempo que o artista aprende essas tarefas, outros profissionais ficam sem trabalho. "Vai demorar um pouco a normalizar, se é que vai normalizar. Tem que haver uma certa união entre os envolvidos porque o futuro ainda está um pouco longe", avalia o produtor.

Em meio à pandemia, a indústria cultural segue por um caminho incerto. No momento, alguns profissionais estão sem trabalho e artistas estão aprendendo a produzir sem plateia. Mas, de todos os aprendizados, talvez um seja o mais forte: que a arte continua e persiste, porque, sem ela, o que estaríamos fazendo no isolamento?

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