Muitas das principais discussões de pautas sociais no Brasil contemporâneo são frutos do entretenimento televisivo e, há 18 anos, um dos principais produtos catalisadores de debate no País vem sendo o reality show Big Brother Brasil. A 20ª edição do programa, que chega ao fim na noite de hoje, 27, trouxe novidades para a receita original e, com o contexto da quarentena, se viu como o único programa inédito em exibição além do jornalismo. O contexto deu novo fôlego ao BBB, que obteve recordes de votação, repercussão nas redes e de audiência na TV - muito fruto da participação de famosos e dos debates sobre raça e gênero que dominaram as narrativas do jogo.
"Uma das características do BBB era o anonimato das pessoas, era trazer sujeitos da vida cotidiana a uma casa e, de certa forma, colocar uma 'lupa' nos comportamentos ordinários", resume a professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará Naiana Rodrigues. "A virada de trazer participantes que eram influenciadores digitais, artistas, é tentar de alguma forma se apropriar do capital social e da reputação desses sujeitos", avança. A mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora e membro do grupo de pesquisa Conexões Expandidas Luiza Mello destaca que a escolha de um elenco com posicionamentos fortes - e divergentes - também ajudou. "É preciso colocar em destaque a escolha minuciosa de pessoas com personalidades, opiniões, valores e características totalmente divergentes e que, natural mente, geraram as discussões que o programa esperava", afirma Luiza.
Ao citar o termo "sororidade" ao vivo no programa, a cantora Manu Gavassi fez a busca pelo termo no Google crescer 250%. Ao ser alvo da maioria da casa, o ator Babu Santana apontou formas nas quais o racismo se revela na sociedade. Esses são somente dois dos exemplos possíveis para falar de como pautas sociais entraram na narrativa do jogo na 20ª edição. "Pelo fato de termos famosos e pessoas públicas envolvidas, sob a influência do cenário atual brasileiro, essas conversas tomaram grandes proporções e se mostraram ainda mais necessárias", ressalta Luiza, que avança: "As pautas sociais provocaram ainda mais engajamento a partir do momento em que amigos e aliados dos famosos, igualmente pessoas públicas, entraram na conversa".
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Tais repercussões se deram majoritariamente via redes sociais. "De fato, elas contribuem sobremaneira para a visibilidade e propagação das conversas. Toda a estrutura e arquitetura informacional do Twitter auxilia na atividade desses fãs. Embora outras redes sociais também tenham um papel fundamental nesse engajamento, o Twitter continua sendo a plataforma favorita para se comentar o BBB", avalia Luiza, lembrando das tópicos mais comentados da rede social, que diariamente contavam com temas voltados ao reality. Além da repercussão de público, a presença online do programa também é um destaque, como explica Naiana. "O programa, transmitido por uma mídia tradicional, tenta de alguma forma estabelecer um diálogo com outros espaços midiáticos, como as redes sociais. Houve todo um investimento de comunicação do programa nelas, numa segunda tela paralela. Muitos participantes, principalmente influenciadores e artistas, deixaram gestores profissionais administrando seus perfis nas mídias sociais, casando momentos do programa com divulgação de seu trabalho", exemplifica.
Soma-se a isso o momento de isolamento e distanciamento. "Pela pandemia e nós também estar confinados, isso trouxe aos espectadores espécies de identificação e projeção, que são os movimentos psicológicos mais trabalhados pelas produções midiáticas de entretenimento", observa Naiana. "Por ser um produto midiático e ter pontos de contato com a situação vivida hoje, o BBB voltou a ser um dos elementos midiáticos de ordenação da realidade. Isso é algo que a Globo não consegue em mais nenhum momento da história, porque houve fatores históricos e sociais", aponta a professora. De fato, considerando os números de audiência do BBB da edição 11 até a 20, a atual tem a terceira maior do grupo. "A Globo está se valendo disso, tanto que esticou a duração. Essa repercussão é um fato inédito na história do programa e na nossa história midiática. Isso só acontecia na década de 1990, nos finais de novela, com as pessoas esperando saber quem matou Odete Roitman. 'Quem vai vencer o BBB 20?' está nesse nível porque nós temos um contexto social que favoreceu esse sucesso", indica Naiana.
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Em meio a reflexões e aprendizados sobre machismo e racismo, as pesquisadoras veem a abordagem de temas do tipo como positiva. "O simples fato das pessoas estarem comentando e falando sobre questões tão oportunas já pode ser considerado um ponto positivo", afirma Luiza. "É importante você ter em cadeia nacional a visibilidade dessas opressões, seja de gênero ou raça, de como o racismo estrutural opera", dialoga Naiana.
"Esses temas só apareceram no BBB porque são latentes e em ebulição no nosso contexto social. O que observamos foi um confronto de valores e ideologias na casa, reproduzindo dinâmicas e embates sociais que a gente vivencia na contemporaneidade", afirma a professora, que destaca como ponto de reflexão dessa atualidade dos debates a própria grade de programação da Globo, que exibe a reprise da novela Fina Estampa, de 2011, antes do reality. "Quando se coloca o BBB ao lado de uma novela de anos atrás em que os valores de raça e gênero não são desconstruídos, ele se torna um programa 'progressista'", exemplifica.
"A gente não pode achar que pelos temas sociais terem invadido o BBB ele se tornou progressista", contrapõe Naiana. "Ele é um produto e, como tal, quer favorecer o lucro da Globo por meio da audiência e da venda de espaço publicitário, e foi isso que ele fez. Mas coloco a presença desses temas como uma vitória da própria dinâmica social em relação à dinâmica comercial do programa. É uma prova de que nossa realidade e a sociedade são maiores do que a lógica comercial. E, na verdade, sendo um produto capitalista com organizadores que são bons estrategistas comerciais, viu-se nisso grande oportunidade de gerar mais audiência", avalia.