No final dos anos 1960, Paulinho da Viola capitaneava o "Chulé Futebol Clube", uma animada confraria boleira que reunia estrelas da música e dos gramados. Nomes como o então novo baiano Moraes Moreira, o jogador Afonsinho, meia do Botafogo, e o produtor musical João Araújo, pai de Cazuza, costumavam participar dos rachas promovidos pelo compositor.
Certo dia, João foi procurar Paulinho nos vestiários e lhe comunicou que estava assumindo a direção artística da gravadora RGE. E pediu ao amigo que, caso tivesse alguma ideia de gravação, Paulinho fosse falar com ele. O sambista pensou por alguns dias e logo deu a resposta: queria gravar o grupo da Velha Guarda da Portela.
Paulinho conhecia os veteranos portelenses desde 1964, quando trocou as rodas de choro de Botafogo, seu bairro natal e sua formação musical primeira, pelos encontros da ala de compositores da escola. Em especial, pelas rodas de samba realizadas aos domingos no Bar do Nozinho ou na Portelinha, a antiga sede da agremiação.
Nesses encontros, Paulinho foi convivendo e ganhando a confiança de nomes como Chico Santana, Alvaiade, Casquinha, Monarco, Manacea, Alberto Lonato, Mijinha e muitos outros compositores portelenses. Ao mesmo tempo, foi se encantando com o estilo de samba muito característico de Oswaldo Cruz, bairro da escola.
A percussão era mais assanhada - as batidas "sujas" dos pandeiros são uma assinatura do grupo -; as harmonias possuíam uma inclinação chorona - o nome Velha Guarda veio em referência ao antigos grupos formados por Pixinguinha e seus chorões -; e a melodia tinha seus famosos "rabichos", como define Cristina Buarque - versos finais que se prolongam além da métrica usual do samba.
Esse samba era resultado da dinâmica da ocupação do bairro de Oswaldo Cruz, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. Para lá, na virada do século XX, foram convergindo os sons e batuques das populações rurais de origem negra, marcadamente o jongo e o caxambu; e a musicalidade oriunda do Centro da cidade, em especial de locais como a Pedra do Sal e os morros da Favela e do Estácio, que respiravam as melodias dos ranchos, cordões e pastoreios.
Com a fundação da Portela, em 1926, toda essa cultura musical encontrou seu abrigo. Um dos fundadores da escola, Paulo da Portela (1910-1949), o "professor" da Velha Guarda, teve um protagonismo decisivo na consolidação dessa tradição. Além de compositor inspirado, ele ajudou a desconstruir a imagem do samba e do batuque como coisas de marginais e vagabundos, estigma que acompanhava os sambistas junto ao imaginário geral da cultura carioca.
"Quero todo mundo com os pés e o pescoço ocupados!", era sua frase célebre, cobrando que todos os componentes da Portela usassem sapato e gravata. Líder natural de todo o movimento de afirmação da escola como a maior agremiação do Rio de Janeiro, ao lado da Mangueira de Cartola, Paulo primava pela elegância e pela fidalguia no comando dos seus sambistas. O respeito e o carisma que impunha eram tamanhos que ele passava na casa pedindo aos pais para que as filhas fossem à Portela e as devolvia no final dos ensaios.
Quando entrou no estúdio da RGE para gravar o primeiro disco da Velha Guarda, Paulinho levou consigo não apenas os sambas, mas toda essa cultura e essa civilidade que pulsava na música daqueles artistas, discípulos diretos da polidez e da fibra de Paulo da Portela. O disco foi gravado em quatro canais, sem ensaio e "de primeira". Com direito ao coro de pastoras lendárias como Vicentina e Iara e às chamadas "vozes de ouro" da escola, como define o escritor Carlos Monte, pai de Marisa Monte, ao se referir a Alcides, Ventura e João da Gente.
O resultado final foi um dos discos mais emocionantes da história da nossa música, ao mesmo tempo tão simples e tão sofisticado. Não à toa, artistas como Marisa Monte, Zeca Pagodinho, Martinho da Vila e Teresa Cristina são fãs declarados do disco e da própria Velha Guarda. O grupo gravou outros discos e segue em atividade até hoje, com novos nomes substituindo os velhos sambistas que já partiram. Ver e ouvir a Velha Guarda em ação é saber da força, da elegância e da dignidade da nossa música popular, valores que parecem ter se perdido nas modas efêmeras que vão se sucedendo no mercado musical hegemônico.
Felipe Araújo é jornalista e advogado
Para ler:
- A Velha Guarda da Portela, de João Batista Vargas e Carlos Monte. Editora Manati, 2001.
- Monarco, de Henrique Cazes. Coleção Perfis do Rio, editora Relume Dumará, 2003.
- Paulinho da Viola, de João Máximo. Coleção Perfis do Rio, editora Relume Dumará, 2002.
- Geografia carioca do Samba, de Luiz Fernando Vianna. Editora Casa da Palavra, 2004.
Para ouvir:
Portela, passado de glória (RGE/ LP/1970)
Portela (Selo Marcos Pereira/LP/1974)
Monarco e Velha-Guarda da Portela (Gravadora Eldorado/LP/1980)
Doce recordação. Velha-Guarda da Portela (Selo Office Sambinha/LP/1986)
Homenagem a Paulo da Portela (Selo Tanaka/CD/1990)
Resgate, de Cristina Buarque (participação) (Gravadora Saci/ CD/ 1994)
Velhas companheiras (com a Velha Guarda da Mangueira) (Selo Sambinha/CD/1999)
Tudo azul (Selo Phonomotor e EMI/Music/ CD/2000)
Casquinha da Portela (Lua Discos/ CD/2001)