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Aldir Blanc, o compositor do cotidiano
Vida & Arte

Aldir Blanc, o compositor do cotidiano

Aldir Blanc morreu ontem, 4, por complicações devido à Covid-19. Mestre-sala dos Mares e O Bêbado e a Equilibrista são algumas das canções do "ourives do palavreado"
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A lei de auxílio à Cultura ganhou o nome do compositor Aldir Blanc
 (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação A lei de auxílio à Cultura ganhou o nome do compositor Aldir Blanc

A música popular brasileira perdeu ontem, 4, um de seus grandes nomes: Aldir Blanc morreu aos 73 anos. O compositor teve uma infecção generalizada em decorrência do novo coronavírus. Ele estava internado no CTI do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, Rio de Janeiro, desde o dia 15 de abril. Aldir era um equilibrista da música brasileira. Não é o sentido literal, entretanto, que define essa palavra, é a metáfora que há 40 anos o compositor havia criado em uma de suas canções mais conhecidas. "Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente. A esperança dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar", entoa a música gravada por Elis Regina.

O equilibrista não permite que o sofrimento se instale. É aquele que, apesar das adversidades, é capaz de sentir e viver o mundo. Essas definições podem caracterizar, também, a forma como Aldir Blanc compôs. Com uma sensibilidade que apenas um artista pode ter, tornou-se um letrista cantado por muitos, como Gilberto Gil, Chico Buarque e Djavan.

Entre samba, valsa, frevo e bolero, marcou o MPB por seu conhecimento da língua brasileira e sua afinidade com diversos ritmos. Antes de se tornar um clássico, porém, havia ingressado na faculdade de Medicina, em 1968. Sete anos depois, desistiria da profissão para se tornar poeta e letrista.

Enquanto ainda estava completando seus estudos, conheceu o compositor e violonista Sílvio da Silva Junior. Juntos, produziram uma canção que ecoa até hoje, Amigo é para essas coisas. A música, que foi feita em formato de conversa, fala sobre o apoio entre duas pessoas que, mesmo distantes, continuam unidas por meio de suas dores, em uma mesa de bar. "Na morte, a gente esquece, mas no amor, a gente fica em paz", diz o letrista apelidado por Dorival Caymmi como "o ourives do palavreado".

Dominando a língua brasileira, transformou a vida cotidiana em poesia. Um encontro no elevador, uma caminhada na orla do Rio de Janeiro ou uma relação antiga entre duas pessoas casadas. Tudo se tornou motivo de composição nas palavras de Aldir Blanc. "Ela sente a solidão do oitavo andar. Todo dia à hora triste do jantar, só um copo, só um prato e ao lado um só talher. Tudo é um em seu pequeno mundo de mulher. Surge a esperança na vida. Ela que dança e convida alguém ao elevador do oitavo andar pro primeiro amor do oitavo andar", escreve em Ela, interpretada também por Elis Regina.

Teve muitas parcerias durante sua trajetória, mas foi com o mineiro João Bosco que manteve uma relação sólida até o fim da vida. Caçador de esmeralda, Comadre e Cabaré estão entre os resultados mais famosos. Em todas, sempre evoca imagens que podem ser comuns para muitas pessoas. "Num fusca duas portas, dois amantes: Fernão louco, Esmeralda desvairada, 3/4 o enleio dos delirantes no Recreio dos Bandeirantes", entoa, citando um bairro nobre carioca.

Não se restringiu, porém, apenas a músicas. Em 2006, lançou o livro de crônicas Rua dos Artistas e Arredores. Neste, reúne os seus textos publicados no antigo jornal Pasquim, durante a década de 1970. Ainda traz outras histórias novas para a obra.

Sempre reservado durante sua vida pessoal, deixou de fazer aparições públicas anos antes de morrer. Há aproximadamente uma década, evitava sair de casa. Talvez já estivesse elaborando a sua grande resposta ao tempo. "Batidas na porta da frente, é o tempo. Eu bebo um pouquinho pra ter argumento, mas fico sem jeito, calado. Ele ri, ele zomba de quanto eu chorei, porque sabe passar, e eu não sei. Num dia azul de verão, sinto vento. Há folhas no meu coração, é o tempo. Recordo um amor que eu perdi. Ele ri, diz que somos iguais, se eu notei, pois não sabe ficar, e eu também não sei".

 

João Bosco e Aldir Blanc, parceiros de uma vida
João Bosco e Aldir Blanc, parceiros de uma vida

O lado B de Aldir

Aldir largou a medicina para se dedicar às palavras. Sorte a do público. Ao lado dos clássicos, algumas canções ficaram perdidas nos sulcos dos LPs. Seguem algumas delas. 

1. A nível de... (João Bosco/ Aldir)

Entediados com o casamento, dois casais decidem fazer um troca-troca pra ver no que dá. A proposta agora é "cada um come o que gosta". 

2. Nada Sei de Eterno (Aldir/ Silvio da Silva Jr.)

Taiguara defendeu esta canção no Festival Universitário da MPB, além de gravar no seu segundo disco. "Vi o amor chorar pra depois mudar/ Igual a chuva que se curva em arco-íris", diz a letra.

3. Caos Brasil (Guinga/ Aldir/ Paulo Emilio)

Um drible esperto de palavras que descrevem um Brasil feito de histórias que mais escondem do que contam. Desde princesas que dão pro Ganga Zumba, até cobras e lagartos na zona militar.

4. Crescente fértil (Ed Motta/ Aldir)

Um Ed Motta diferente de tudo que já se ouviu.

5. Feliz ano novo (Roberto Menescal/ Aldir)

Um bolero com pé no blues embala um caso de amor com Iemanjá, à beira-mar do Rio de Janeiro. Leila Pinheiro em grande momento.

6. Maçã tatuada (Moacyr Luz/ Aldir)

Um retrato da prostituição nas grandes cidades. Cru e poético. "Chamava-se Moema, era morena e tinha apenas 13 anos", canta Fátima Guedes.

7. Popó (Chico Pinheiro/ Aldir)

Em parceria com o violonista Chico Pinheiro, Aldir usa o boxer Acelino "Popó" para medir um nocaute diferente: uma traição. Quem canta é Maria Rita, estreando nessa função.

8. Preta-porter de tafetá (João Bosco/ Aldir)

Brincando com os sons do português e do francês, Aldir faz seu samba-enredo e convida François Mitterrand pra dança.

9. Siri recheado e o cacete (João Bosco/ Aldir)

Uma história qualquer, de um almoço para receber amigos. Aldir só precisa disso pra marcar presença na galeria dos inesquecíveis.

10. Picadinho de macho (Tavito/ Aldir)

Numa rara incursão pelo RAP, Aldir assina uma vingança das mulheres contra os machos. "Vamos cobrar, e não vai ser barato. Fazer esses trapos de gato e sapato", Sandra de Sá canta e de diverte.

Retratos de dias comuns

O Brasil não é fácil. Diariamente recebemos uma boa dose de motivos para alimentar nossa desesperança. Parece que andamos pra frente, mas sempre com uma pesada bola de ferro presa ao tornozelo. Pra nossa sorte, temos a música e pessoas como Aldir Blanc. Sua postura, expressada em palavras, é de um ser combativo, que sempre tem algo a dizer. Assim foi naqueles nebulosos anos 1970, quando ele deu voz à esperança com duas personagens tão corriqueiras, um bêbado e uma equilibrista - se parecem distantes, ambos precisam se esforçar muito para ficarem de pé. Mas o corriqueiro não é banal na caneta de Aldir. Das costumeiras noitadas de um boêmio (Me dá a penúltima) à solidão da mulher que o espera em casa (Bodas de prata). E ainda o cansaço dos casamentos que duram mais do que deveriam (Siameses). Tem ainda o vazio dos concursos de beleza (Miss Sueter), o envelhecer comum a todos (Resposta ao tempo) e o crime nos grandes centros (De frente pro crime). Um cotidiano tão comum a todos, mas que Aldir Blanc lança seus holofotes e faz daquele instante o retrato de um Brasil imenso. "O Brazil ainda não merece o Brasil", mas que felicidade saber que o brasileiro mereceu Aldir Blanc. (Por Marcos Sampaio)

 

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