Os primeiros dias de gestão da atriz Regina Duarte frente à Secretaria Especial da Cultura do Governo Federal foram marcados por agenda cheia. À rotina da artista, que assumiu o cargo no dia 4 de março, foram adicionadas reuniões e despachos com políticos, encontros para discutir a estrutura da SEC, “visitas de cortesia” de gestores e organizações, videoconferências com diretores de equipamentos. No entanto, com os crescentes impactos da pandemia do novo coronavírus no País - que começaram a tomar forma pouco depois de Regina tomar posse -, a presença da gestão da secretaria para apoiar a classe artística e cultural vem sendo avaliada como insuficiente por gestores e artistas.
O primeiro e até agora único diálogo direto entre a nova gestão da SEC e dirigentes estaduais da Cultura, representados pelo Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Cultura, ocorreu em 19 de março. “No dia seguinte ao que ela entrou, solicitamos uma reunião e fomos informados que ela passaria um mês ‘tomando pé’ da estrutura da SEC para depois abrir agenda. Mas a pandemia se abateu e ela marcou reunião remota”, contextualiza a presidente do Fórum de Secretários e secretária da Cultura do Pará, Úrsula Vidal.
Na ocasião, foi apresentada uma carta com proposições de medidas emergenciais, como lançamento de editais e destravamento de financiamentos. Do dia 19 até aqui, os gestores dos Estados seguem no aguardo de novo canal de diálogo. “Não obtivemos retorno. Estamos desde então solicitando nova reunião virtual com ela e a equipe, uma posição sobre as proposições contidas na carta. Foram várias tentativas por e-mail, telefone. Não temos nenhuma posição sobre uma nova agenda, tampouco sobre ações que podem mitigar esses impactos”, afirma Úrsula.
“Não dá pra dissociar a chegada da Regina Duarte do desmonte que a cultura vem atravessando no governo Bolsonaro”, avalia Gilvan Paiva, secretário da Cultura de Fortaleza. A pasta, vale lembrar, surgiu na gestão do presidente Jair Bolsonaro por conta da decisão de extinguir o Ministério da Cultura. De 1º de janeiro de 2019 até aqui, foram quatro gestores à frente da secretaria, que segue em um limbo entre os ministérios da Cidadania e do Turismo. “É mais sensato dizer que a secretária ainda não teve oportunidade de se apresentar ao País, mesmo aos setores culturais. Ela está ainda à sombra desse desmonte e de uma sucessão de alternativas dadas pelo governo Bolsonaro que foram desastrosas”, segue o titular da Secultfor, lembrando do antecessor de Regina, o dramaturgo Roberto Alvim - exonerado após publicar um vídeo institucional que referenciava Joseph Goebbels, ministro da Propaganda nazista
Secretário da Cultura do Ceará e ex-presidente do Fórum Nacional, Fabiano Piúba avalia que “Alvim saiu, mas o Goebbels continua lá dentro”. “O pensamento de uma política cultural fundada naqueles princípios e premissas que o Alvim vinha trabalhando, de uma política mais nacionalista, com um perfil mais conservador e num diálogo mais tenso com o campo artístico cultural, permaneceram. A própria Regina não conseguiu ainda autonomia em torno da nomeação do seu quadro”, aponta. Um exemplo recente foi a nomeação do secretário especial adjunto da secretaria, marcada por tensões. A primeira opção, o gestor Humberto Braga, foi alvo de campanhas bolsonaristas nas redes. O advogado Pedro Horta acabou indicado ao cargo na semana passada. Além desse caso, o pesquisador Aquiles Brayner foi nomeado para a diretoria do departamento de livro, literatura e bibliotecas e, três dias depois, acabou demitido. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a Fundação Nacional de Artes seguem sem chefia definida.
Entre as ações relacionadas ao momento da pandemia divulgadas pela secretaria até o momento, estão a publicação de uma Instrução Normativa que flexibiliza regras de financiamento ligadas ao Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e a ampliação do auxílio emergencial de R$ 600 para os trabalhadores do setor. As medidas, porém, são consideradas insuficientes. “A Instrução Normativa tem impacto na Lei Rouanet, mas a gente tem uma parcela extremamente reduzida da economia da cultura e da arte beneficiada por essa Instrução. Aqui na região Norte, temos cerca de 1% de acesso a financiamentos da Lei Rouanet. Outra questão anunciada é que o Governo Federal já está estendendo o auxílio emergencial aos profissionais da cultura e da arte. O problema é que o presidente não sancionou a decisão - que foi de iniciativa, inclusive, do Senado”, contrapõe Úrsula. “Estamos precisando de ações mais concretas para esse enfrentamento”, reforça Fabiano.
A principal demanda do momento é o descontingenciamento do Fundo Nacional da Cultura, principal mecanismo do governo para apoio direto a projetos do País, sendo um dos três instrumentos da Lei de Incentivo à Cultura. O fundo, que chegou a liberar R$ 344 milhões em verbas para financiamento de projetos e programas do setor em 2010, liberou em 2019, primeiro ano do novo governo federal, R$ 995 mil. “Isso mostra uma desidratação profunda das políticas de fomento e difusão das linguagens, expressões e manifestações artísticas”, aponta Úrsula, que lembra que o descontingenciamento é discricionário, ou seja, depende apenas de decisão do próprio governo, sem necessidade de passar pelo Congresso Nacional. “O recurso poderia ser repassado aos estados, que já estão fazendo editais emergenciais, o mecanismo já está operando. A gente precisa de recurso para poder ampliar esse alcance”, afirma.
Além da liberação de verbas do FNC, Úrsula também aponta a importância do Fundo Setorial do Audiovisual, que retroalimenta um dos setores mais bem sucedidos da cultura brasileira - e também um dos mais atacados pelo governo. “Nós também pedimos a imediata contratação de 900 projetos que estão esperando o Fundo Setorial do Audiovisual. (A liberação dos dois fundos) muito rapidamente poderia significar uma injeção de recursos na economia da cultura e da arte nos territórios por meio de mecanismos legais, transparentes, consolidados”, defende a secretária.
A liberação desses recursos ajudaria não apenas no decorrer da crise, mas no pós. “Os recursos do FNC são um instrumento vital nesse momento. A questão central é como a gente poderá contar com esse recurso para o enfrentamento e, ao mesmo tempo, para o que virá à frente, numa reconfiguração do que é o fazer artístico e cultural, daquilo que tem aglomeração de pessoas”, aponta Fabiano. “A cultura foi o primeiro setor a parar e talvez seja o último a voltar, porque quando é que as pessoas vão se sentir seguras novamente a ir a um museu, um show, um teatro, uma festividade?”, questiona Úrsula. Apesar da urgência, a presidente do fórum de dirigentes do setor é realista. “O Governo Federal não tem dado nenhum sinal de que compreende a cultura. Nós tivemos alguns momentos de diálogo com o Henrique Pires (primeiro titular da secretaria). Foram poucos avanços, mas pelo menos a gente conseguia reunir, dialogar. No caso da Regina, a gente fez uma reunião virtual e até então nada mais, num momento em que a gente precisa ter uma agenda permanente. A gente não sabe o que foi acatado ou qual é a gestão que eles estão fazendo de que pontos das nossas proposições. Isso provoca nos secretários, nos dirigentes de cultura, muita apreensão”, ressalta.
Secretária tem presença forte no Instagram, onde é alvo de críticas
A presença virtual da secretária especial da Cultura Regina Duarte vai na contramão da presença efetiva que o cargo pede. No Instagram, foram quase 200 postagens feitas desde 4 de março, quando começou no cargo. A linha dos conteúdos da secretária varia entre apoio ao governo federal, frases para reflexões, divulgação de diferentes expressões artísticas. Alguns conteúdos, inclusive, foram advertidos pela própria rede como potencialmente falsos - como aquele em que Regina replicou que falava sobre a hidroxicloroquina. Os comentários dividem-se entre críticas feitas por pró-bolsonaristas e críticas feitas por anti-bolsonaristas. No dia 12 de abril, ela fez um post comemorando 40 dias de mandato. "Lembrando que o coronavírus eclodiu dois dias depois. Isso não impediu, no entanto, que a nossa equipe continuasse trabalhando neste tempo todo (às vezes mais que 12 horas/dia, inclusive aos sábados...), contornando dificuldades, recebendo e acolhendo centenas de mensagens e criando saídas e novos programas para dinamizar o setor tão logo tudo no país se normalize. Logo, logo, assim que a endemia passar, vamos apresentar as pautas positivas que estamos organizando para lançar em prol das expressões culturais do nosso Brasil e seus artistas tão maltratados pela impossibilidade exercer seu ofício", escreveu.
Em alguns dos posts, figuras públicas criticam a gestora. Numa publicação de 19 de abril, Regina escreveu: "Esgotando todas as possibilidades do quê inventar nesta interminável 'quarentena'...", ao que o ator Mateus Solano respondeu que ela "tem MUITO a fazer por MUITOS". Já em post do dia 24 de abril, foram vários os comentários. A apresentadora Astrid Fontenelle escreveu: "Artistas, muitis q te ajudaram diretamente a construir sua vitoriosa carreira artística estão passando fome!! E vc nenhuma palavra?? Cadê o Fundo Cultural e nos pertence???!!! Acorda Regina!!" (sic). "Vai trabalhar!!!! Os artistas estão morrendo de fome!" (sic), demandou o ator e cantor André Frateschi. A atriz Elisa Lucinda avaliou: "O bicho tá pegando, Regina! Vc entrou num barco furado" (sic). Fora do Instagram da secretaria, mas também nas redes, a atriz Christiane Torloni participou de live no dia 27 de abril e criticou o "sumiço" da gestora. “Há técnicos, bilheteiros, a pessoa que abre e fecha o teatro, e que já tem muitas pessoas passando sufoco. E a pergunta que não quer calar: Cadê a Regina Duarte?", questionou.
Perguntas para a secretária
Na última terça, 28, a reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da Secretaria Especial da Cultura. A intenção era conseguir uma entrevista com a secretária Regina Duarte. Até o fechamento dessa edição, o pedido não foi respondido. Por isso, o Vida&Arte publica, abaixo, as perguntas que faria para a gestora.
1- Como a senhora está encarando, acompanhando e avaliando os impactos da crise do novo coronavírus junto aos trabalhadores da cultura?
2- Que ações foram tomadas pela secretaria nesse sentido dos impactos da crise a favor desses trabalhadores?
3- A secretaria projeta algum programa ou projeto voltado ao apoio à classe, como alguma ação ou plataforma de economia solidária, financiamento ou mesmo divulgação de trabalhos de artistas?
4- A presença da senhora nas redes sociais é intensa, mas em seu perfil do Instagram não houve condolências oficiais, por exemplo, às mortes recentes de Rubem Fonseca ou Moraes Moreira - figuras relevantes para a cultura no País. As redes da secretária são de caráter oficial ou pessoal? O que leva à ausência de posicionamentos e divulgações de ações da Secretaria Especial da Cultura?
5- Como a senhora avalia as condições de trabalho e tomada de decisão na pasta?