Série traz novos desfechos para velhas questões de Hollywood
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Série traz novos desfechos para velhas questões de Hollywood
Nova produção de Ryan Murphy para a Netflix, Hollywood reescreve a década de 1940 na indústria norte-americana do cinema a partir de olhar e questões contemporâneas
Hollywood, nova minissérie da Netflix criada por Ryan Murphy (Glee, American Horror Story) e Ian Brennan, se baseia no desejo utópico de reescrever os processos machistas, racistas e LGBTfóbicos nos quais a indústria de cinema dos EUA se construiu e, talvez mais fortemente, ajudou a construir. E se, por exemplo, executivos de Hollywood decidissem, nos anos 1940, abrir espaço para uma atriz de ascendência chinesa que, no passado, foi preterida por uma branca na escolha de protagonismo de um filme passado na China? E se, quem sabe, um roteirista negro e gay, na mesma década, conseguisse emplacar uma trama em um grande estúdio? Em tempos nos quais o caráter distópico não somente inspira obras, mas se acerca ao cotidiano contemporâneo, Hollywood propõe uma grande utopia do "e se?", exercício assumidamente ambicioso, inventado, ingênuo, mas com muita verdade na intenção.
Propor realidades alternativas baseadas em fatos da historiografia têm conquistado bastante espaço no entretenimento recente, como na série The Plot Against America e nos filmes Era Uma Vez... Em Hollywood e Yesterday. Aqui, a trama parte do aspirante a ator Jack Castello, que procura o cinema como fonte de sonhos e dinheiro para viver com Henrietta, sua esposa grávida. Os caminhos pelos quais tenta adentrar no fictício Ace Studios são tortuosos, mas o reúnem com um grupo que divide com ele as mesmas aspirações: Camille Washington (Laura Harrier), atriz que precisa superar a barreira da raça e dos estereótipos; Roy Fitzgerald (Jake Picking), aspirante a ator que precisa lidar com a sexualidade; e Archie Coleman (Jeremy Pope), roteirista negro e gay que tenta emplacar uma trama no estúdio.
Há, ainda, o aspirante a diretor Raymond Ainsley (Darren Criss); Claire Wood (Samara Weaving), filha do dono do estúdio que quer ser atriz; o poderoso produtor Dick Samuels (Joe Mantello); o outrora aspirante a ator Ernie West (Dylan McDermott), que acabou seguindo por outros negócios; a veterana produtora de elenco Ellen Kincaid (Holland Taylor); o importante e cruel agente Henry Wilson (Jim Parsons); e Avis Amberg (Patti LuPone), esposa do dono do estúdio que traz grandes mudanças.
São muitas personagens com algum grau de relevância e acaba sendo difícil definir protagonismos. Quem "comanda" de partida é Jack, mas as outras narrativas, mais alinhadas ao desejo central de "reconstruir" a história de Hollywood, conquistam mais espaço. Essa reescrita se dá, naturalmente, em um equilíbrio entre invenção e realidade, misturando personagens ficcionais e figuras reais - como as atrizes Anna May Wong e Hattie McDaniel, cujas presenças "factuais" também são marcadas por invenção. Ambas são, na minissérie, coadjuvantes, mas carregam importância simbólica enorme do gesto proposto pela obra. De certa forma, Hollywood faz "justiça" à atriz de ascendência chinesa que teve a carreira marcada por estereótipos de raça e à atriz que foi a primeira negra a vencer o Oscar, em 1940, mas não pôde participar da cerimônia por regras racistas que vigoravam nos EUA à época.
As correções de injustiças históricas se dão, sim, para figuras específicas, mas também para questões estruturais da época, sempre adicionando camadas à construção dessa realidade na qual Hollywood se abriu para a diversidade e a representatividade décadas antes. Há espaço até para etarismo, quando uma atriz mais velha de cinema, caindo no ostracismo, ganha a chance de protagonizar uma nova produção do estúdio. Curioso notar, abrindo um parêntese, que a opção que ela encarava como a única possível para seguir na carreira seria investir na televisão - isso, fazendo parte do roteiro de uma minissérie reverente à sétima arte e produzida pela Netflix, plataforma-símbolo dos novos tempos, modelos e modos de consumo.
Mesmo com a força desses inspiradores "e se?", Hollywood guarda alguns "poréns". Desenvolvida em sete episódios, acaba tendo desenrolares prematuros, atropelados ou, pior, que soam como desperdício de tempo - é algo questionável optar por dar espaço a crises conjugais entre Jack e Henrietta, por exemplo, ao ter a possibilidade de aprofundar ainda mais personagens ricos como Dick, Avis, Ellen e Ernie. Há, ainda, a abordagem do assédio sexual na indústria do entretenimento, representada por Henry Wilson, que resvala em certa irresponsabilidade na resolução. Cabe até questionar que, em meio a tantas correções históricas, a transsexualidade não tenha lugar narrativo - apesar da obra contar com pessoas trans na equipe, como a diretora e roteirista Janet Mock. De uma maneira ou outra, seria ingênuo julgar que a minissérie daria conta de "reescrever" todas as problemáticas. Hollywood não traz nada de fato audacioso ou inédito, não muda de fato nenhuma das bases racistas, misóginas, machistas e LGBTfóbicas da indústria, mas escolhe fazer um gesto pela empatia. Em tempos agressivos, basta isso para oferecer ao público um gostinho de final feliz.
Hollywood
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