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Crônica: Bonita sina para uma rua
Vida & Arte

Crônica: Bonita sina para uma rua

Este ano, devido à quarentena, não haverá procissão de N. Sra. de Fátima em Fortaleza. Mesmo assim, a jornalista Izabel Gurgel volta o olhar para os altares da rua Barão de Aratanha, principal corredor do cortejo
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A CASA de dona Quitéria da Costa e Silva é uma das que ganham decoração especial em homenagem à santa. A moradora vive na Barão de Aratanha desde a década de 1940 (Foto: Tatiana Fortes em 13/5/2015)
Foto: Tatiana Fortes em 13/5/2015 A CASA de dona Quitéria da Costa e Silva é uma das que ganham decoração especial em homenagem à santa. A moradora vive na Barão de Aratanha desde a década de 1940

“O coração é luminoso?” - uma senhora passa e pergunta. Está no caderno onde guardo, desde 2015, a Barão de Aratanha. A rua faz altares para acolher, entre suas margens, a procissão de N. Sra. de Fátima a cada 13 de maio, a cada 13 de outubro. Vinda do mar de gente, a pergunta antecipava a passagem da imagem. Duas vezes por ano, ela sai às 18h da Igreja de N. Sra. do Carmo, no Centro, rumo à Igreja de Fátima, no bairro de mesmo nome. Os dias 13 de maio e de outubro fazem a outrora rua da Lagoa do Garrote vibrar feito chama.
É uma experiência que anoto para a série Cidade Portátil, trabalhando com uma compreensão de acervo vivido, incorporado. A(s) experiência(s) de cidade que levamos conosco. Digo: o lugar vive na gente. Como uma ladainha visual, os altares caseiros da Barão de Aratanha estão na superfície, ao alcance do olhar que passa. Uma parada, um dedo de prosa, e se realizam como oferendas. Pequenas passagens para encontros que podem durar mais do que a existência, breve, bem breve, para a qual são feitos.
Monta-se, quase sempre, ao sol menos duro das 4 da tarde. Tão logo passa a procissão, desmonta-se. Nesse intervalo, fica cheia de graça a rua que nasce à altura da Igreja do Coração de Jesus e finda na avenida 13 de Maio. Uma localização, um destino. Concentração maior no trecho entre a Domingos Olímpio e a rua Joaquim Magalhães. Exceções na paisagem, algumas casas têm altares fixos. Predominam os de vida efêmera. Em cada um, em todos, micronarrativas, mundos.
Maio de 2017, lá está o carnavalesco Augusto Oliveira na calçada da casa de número 712 para “fazer o altar da Liêta”. Das pioneiras no cultivo dos altares, a tia materna Julieta Rodrigues de Oliveira (1929 – 2010) “nasceu e morreu no mesmo dia 9 de julho”, diz Luiza Oliveira. Esteja a casa alugada ou, como agora, esperando reforma, faz-se o altar. Em outubro de 2019, Danielle de Almeida Nascimento entrou e pegou a santa. “Improvisei”, disse na foto do altar enviada por zap. Mora na casa 718. Em 1975, quando nasceu, sua avó e Liêta já eram amigas. Avó que é outra nota de alegria. A professora Érika Menezes não mora mais na rua onde nasceu em 1977 mas guarda Dona Fransquinha da Pipoca, a manauara Francisca Martins do Nascimento.
Em tempo de luto, nesse maio sem o dia 13 como o de sempre, talvez estejamos bem ditos na saudade da Maria Axiliadora, a Cila da casa 746: “Quando falo na Liêta, fico cansada por dentro”. A casa de onde Liêta irradiava lanternas feitas a mão para doar na passagem da procissão, essa casa a antecede, além de espelhar a ironia dos objetos, isso de durar mais do que a gente. É a casa de Chico Imidiato e Michal, ele, mecânico, a cuidar dos tambores do maracatu, rosto pintado, ancas balouçantes, colares e luvas para brincar no carnaval. Da fundação do Az de Ouro. Depois, brincante do Rei de Paus. Ela, pitaguary a perfilar rede. Vivem nos filhos Geralda, 97, e Assis, 95. Acendem a memória do neto Marcos Antônio Oliveira, o cabeleireiro Marquinhos.
Bem viver na Terra, a dádiva desejada. Quitéria da Costa e Silva surge entre flores naturais trazidas por família amiga para o altar. Ela faz aniversário dia 12 de maio. Nasceu em 1927 na Tapera, Cascavel. Casou em 1946 e mora desde então ali, casa 578. Terá visto passar a carroça de bolo da Deolinda, depois da rota pelo Centro ou ao fim de uma quermesse? Batata, massa puba, macaxeira, milho. “Via-se de longe que ela estava vindo”, diz Marquinhos. Um grande lume anunciava Deolinda. Bonita sina para uma rua.

Izabel Gurgel é jornalista e cronista dominical do Vida&Arte

 

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