Logo O POVO+
O novo normal. O mundo após as lives
Vida & Arte

O novo normal. O mundo após as lives

Fronteira porosa entre o público e o privado, as transmissões ao vivo têm se mostrado reveladoras da nossa mais pura e banal humanidade
Edição Impressa
Tipo Notícia Por

Novidade da paisagem pandêmica, as transmissões ao vivo inauguraram uma nova maneira de se estar nu sem estar. Diluem fronteiras entre privado e público, instaurando essa zona cinzenta pela qual transitamos sem saber ao certo se vamos à paisana ou em modos de trabalho, se nos vestimos bem apenas da cintura para cima ou se nos metemos inteiramente em trajes de passeio, ainda que reconheçamos que os pés não hão de cruzar a soleira da porta.

Essa confusão de registros tem criado embaraços de toda sorte. Disso resulta uma comunicação híbrida, sob chave doméstica e mais intimista? Cedo para dizer. Conversando com uma amiga jornalista habituada ao rádio, eis que me confidenciou que a audiência gosta de vê-la trabalhando, e não somente ouvi-la, e até vibra quando leva uma xícara de café à boca.

Então é isso: como estamos afastados uns dos outros e qualquer contato físico é, desde agora, uma infração legal passível de detenção e um ato de desafio às autoridades sanitárias, o banal nos comove mais do que nunca?

Outro dia me surpreendi emocionado ao ver rostos conhecidos numa reunião de trabalho. Não o admiti, é claro, mas estava ali, à visão dos amigos a quem não abraço há mais de mês, perto de lhes confessar que tinha por eles muita saudade, mesmo que nos víssemos toda semana naquele quadradinho virtual cuja imagem tremida era muito.

É essa a imagem ao alcance, o pedaço desse outro que nos chega: a projeção sem qualidade via conexões de rede, um reflexo do sorriso que ora congela, ora descongela, mas que nos farta nessas horas de falta. O que antes era signo de ruído e ausência de comunicação, porém, foi convertido em traço constante e bem-vindo - antes a comunicação falha do que nenhuma comunicação. Importa agora é atravessar as lonjuras físicas, ainda que empoleirados numa internet cambaleante que nos chega aos bocados e trava nas horas mais importantes.

Consome-se muito nessa sociabilidade digital que os tempos de peste impuseram a todos nós. Mais da metade de uma conversa simples entre dois adultos desenrola-se entre frases que se prestam a testar o canal da fala: está me ouvindo?, agora está melhor?, ouve-me bem se eu me trepar neste móvel?

Pobres de nós, que levamos a sério esse isolamento e há dias não vamos à praça ou à calçada da rua, salvo quando para tarefas ordinárias que ganham um sentido de urgência, quase de missão. Banho-me e me perfumo, faço a barba e engomo a camisa para ir à bodega da esquina, onde encontrarei os bêbados da rua com bermudas de tactel e camiseta regata e o proprietário, que sempre puxa papo pela mesma interrogação: acha que um dia tudo isso irá passar?

É uma pergunta filosófica da qual me esquivo sempre que posso nestes dias. Não apenas delas, mas das leituras mais desafiadoras e livros exigentes, além de toda espécie de produção para cujo entendimento e interpretação seja necessário usar mais do que dois neurônios.

Entendam: não é que tenha emburrecido. Talvez até tenha e eu não saiba. Mas, no fundo, sinto como se estivesse exausto, uma exaustão que só aumenta quando, entre tudo que está na estante e o cotidiano, se revela um abismo intransponível. Eu preciso que me falem dos gestos mínimos, das trivialidades e dessas coisas muito básicas que temos descoberto a grande custo: os próximos, o amor, o essencial ao dia. É uma pedagogia da pedra.

Talvez por isso o ouvinte da rádio se deleite com essa xícara de café em meio ao programa jornalístico no qual se discutem os números frios de óbitos e de infectados pela enfermidade que nos mantém trancados. É o mais próximo que estamos de uma humanidade deixada para trás e evocada de quando em quando nas transmissões ao vivo pelas redes sociais.

É a Ivete na cozinha de casa cantando de pijama a uma plateia que não conhece e pela qual não esperava. É o deputado que se acha pelado e, de repente, surpreende-se não no apartamento, onde se permite a escassez de roupa, mas na arena política, neste momento transposta para outro universo.

Daí que Marília Mendonça tenha se transformado em símbolo desse novo normal. Ali, refestelada numa cadeira da sala, sem qualquer rigor de produção, os pés descalçados e totalmente à vontade nesse anti-palco, a cantora fez a live das lives.

Nela, remoeu seu cancioneiro de matéria-prima já sabida, mas sempre surpreendente: a dor de cotovelo, a saudade, o desamparo amoroso. Juntou milhões em redor de sua voz e letras sobre tudo que está na casa do sem jeito.

Quem sabe a mensagem esteja aí.

O que você achou desse conteúdo?