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Paschoal Carlos Magno: O estudante perpétuo do Brasil
Vida & Arte

Paschoal Carlos Magno: O estudante perpétuo do Brasil

Há 40 anos, as artes brasileiras perdiam Paschoal Carlos Magno, agitador cultural que segue relevante e dá nome ao teatro da Universidade Federal do Ceará
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ARQUIVO. Ator e poeta Paschoal Carlos Magno. (Foto Acervo Paschoal/Funarte) (Foto:  Acervo Paschoal/Funarte)
Foto: Acervo Paschoal/Funarte ARQUIVO. Ator e poeta Paschoal Carlos Magno. (Foto Acervo Paschoal/Funarte)

O homem que botou o teatro brasileiro em seu devido lugar. É assim que Paschoal Carlos Magno (13 de janeiro de 1906 - 24 de maio de 1980) é definido no cordel "Embaixador da cultura", escrito por Gonçalo Ferreira da Silva, cordelista cearense da cidade de Ipu. O poeta circunscreve o homenageado como um dos responsáveis por fazer a "juventude alcançar a plenitude no País".

As palavras simbolizadas em versos apresentam poderosa síntese de Paschoal, criador do Teatro do Estudante do Brasil em 1938, crítico teatral, dramaturgo, gestor, ator e diretor, em suma, um completo agitador cultural. Do Rio de Janeiro, onde nasceu, o também diplomata literalmente transportou as artes brasileiras País afora em caravanas que realizou por quase 20 estados com participação de mais de 200 jovens artistas - tendo articulado também os projetos Barca da Cultura e Trem da Cultura.

 "Ele lançou a Rachel de Queiroz como dramaturga, abriu espaço para muita gente", recorda o teatrólogo Ricardo Guilherme - apelidado por Paschoal como "Chico Espirro", após pelejar com as baixas temperaturas quando morou com o diplomata no Rio. "Ele mudou a história do teatro brasileiro, foi o homem que teve a sacação de que o teatro só se modificaria a partir do descompromisso dos jovens", conta. Ricardo tinha apenas 22 anos quando foi "descoberto" pelo carioca e convidado para organizar um acervo histórico na Aldeia de Arcozelo, em Paty do Alferes (RJ), acervo que hoje integra o Centro de Documentação da Funarte.

Ricardo explica que o carioca trouxe "oxigenação" à cena brasileira e fez com que "a produção considerada periférica e amadora tivesse status de vanguarda", contemplando também outras linguagens artísticas. "Paschoal não se interessava só por teatro. Ele tinha ligação com a música, com a literatura. Aqui no Ceará, se aproximou do Grupo Clã", detalha. Sempre antenado ao que surgia, o "embaixador da cultura" produziu os Festivais Nacionais de Teatro de Estudantes, abriu o Teatro Duse e revelou nomes como B. de Paiva, Sérgio Cardoso, Sérgio Britto, Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, Othon Bastos, entre tantos outros.

Toda essa relevância cultural era coroada por uma personalidade divertida. É o que recorda a atriz Fernanda Quinderé, que conviveu e trabalhou com Paschoal no Rio e aqui no Ceará. A artista conta que certa vez estava com Paschoal - "espirituoso e inteligentíssimo" - na porta do Teatro Glauce Rocha quando o assunto "morte" se impôs. "Ele falou 'Fernanda, quando eu morrer não quero ser velado no Teatro Municipal, o povo só vai querer ir para lá pra ver o Francisco Cuoco, o Tarcísio Meira e outros famosos que vão comparecer, quero um local mais simples'. Aí eu expliquei para ele que não seria eu que resolveria aquilo, ele era uma figura pública, muito respeita e querida", se diverte Fernanda, até hoje. A vontade dele se cumpriu: foi velado na Casa do Estudante.

Paschoal, porém, não foi imune a críticas. Apesar de também promover autores como José de Alencar, Machado de Assis e William Shakespeare, foi acusado de superestimar a juventude. "As pessoas reclamavam que ele ocupava um espaço como crítico teatral, mas, na verdade, sendo jovem e apontando o caminho que ele queria, o Paschoal ia lá e encontrava qualidades pra revelar essa pessoa", conta Ricardo.

Todo esse impulso à juventude estudantil rendeu a Paschoal o título de "Estudante Perpétuo do Brasil" pela União Nacional dos Estudantes, em 1958. Aqui no Ceará, terra que visitou várias vezes de 1929 a 1979, ele passou a dar nome ao teatro da Universidade Federal do Ceará. A nomeação ocorreu no mesmo ano de sua morte, após sugestão de B. de Paiva e reforço de Ricardo Guilherme. Mais uma homenagem entre tantas que esse artista cercado de "subversões" recebeu mesmo durante a ditadura militar.

"Paschoal era tão respeitando que não tinha general no mundo que colocasse o dedo na cara dele. Ele tinha sido embaixador do Brasil na Inglaterra, não era qualquer um que dizia o que ele tinha que fazer", reforça Fernanda. A atriz ressalta a ausência que uma figura com tremendo potencial de liderança faz no País de 2020. "Ele era muito generoso, ajudou muitos artistas. Todos tinham o maior respeito pela representatividade dele dentro da cultura. Tinha falas que até hoje são atualíssimas. Paschoal está fazendo falta no Brasil de hoje".

Renato Abê é jornalista, dramaturgo e especialista em Artes Cênicas pela Casa das Artes de Laranjeiras

Paschoal Carlos Magno por Ricardo Guilherme

Abaixo, o dramaturgo Ricardo Guilherme presta sua homenagem a Paschoal Carlos Magno de duas formas. Em verso e em prosa, ele fala sobre amizade, admiração, inspiração e parcerias com o homem que ele define como "o grande animador cultural do século XX, em todas as artes, sobretudo o teatro". Confira.

 

RG DE RG
Registro geral de Ricardo Guilherme
Memórias (45)

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registro geral de ricardo guilherme
memórias (45)

Tive o privilégio de conviver com Paschoal Carlos Magno, o grande animador cultural do século XX, em todas as artes, sobretudo o teatro. Eu o conheci, aos 22 anos, em 1977. Ele já estava doente. Aparentava, por causa da debilidade da doença circulatória, ser bem mais velho, mas deveria ter 70 ou menos. Porém, continuava ativo, em campanha pela preservação da sua Aldeia de Arcozelo, no estado do Rio de Janeiro. Sonhava em fazer da chamada Aldeia uma escola de artes. Ali havia um conjunto de inúmeros dormitórios, dois teatros, uma sala de exibição cinematográfica, restaurante amplo, biblioteca, pinacoteca, salão de exposições, piscinas. Enfim, toda uma infra-estrutura para o desenvolvimento de um projeto que incluísse artes e esportes. Todo o aparato, no entanto, estava deteriorado e sem organização sistemática. Seriam necessários investimentos expressivos para recuperar e colocar em funcionamento.

Numa das dependências da Aldeia encontrava-se o acervo histórico de todos os projetos que Paschoal, desde a década de 1930, houvera liderado em favor da cultura brasileira. Foi em função desse acervo que nos aproximamos. Era 1977. O então Museu Cearense de Teatro, que eu havia criado em 1975, funcionava no foyer do Teatro José de Alencar. Paschoal estava em Fortaleza. Ele vinha sempre. Era amigo da classe teatral e sempre se envolvia com qualquer reivindicação teatral, pelo Brasil afora. Pois foi numa dessas visitas ao Ceará que, por intermédio de B. de Paiva, propus que o Paschoal visitasse o Museu Cearense de Teatro e a sua presença em nossa exposição selou uma amizade que duraria até a sua morte, em maio de 1980. Paschoal ficou impressionado de ver em Fortaleza um acervo, em exposição, sobre o teatro cearense e brasileiro. E no livro de visitas do museu, deixou esta mensagem:

" Velho combatente do Teatro Brasileiro, eu me comovi até as lágrimas visitando este Museu de Teatro, obra de perseverança, de idealismo de um homem como Ricardo Guilherme que realiza – desamparado das autoridades - uma obra de amor e inteligência".

Depois de percorrer a exposição, Paschoal fez o convite para que eu fosse ao Rio organizar o material alusivo ao Teatro de Estudantes do Brasil, grupo que ele havia fundado em 1938, responsável pela renovação da cena brasileira e pela criação dos famosos festivais nacionais de teatro. Ora, aquela era uma oportunidade, não apenas de conviver com essa figura fundamental para história do Brasil, mas também de estudar sobre os incontáveis grupos que o movimento estudantil promoveu, nas décadas de 1930, 40, 50, 60 e 70 do século XX.

Poucos meses depois do convite, tomei um avião e fui ao encontro dessa missão. Nessa época, a sua casa no bairro de Santa Teresa - que abrigara nos anos 1950, o Teatro Duse, de tanta importância para o aparecimento de dramaturgos, diretores e atores - já havia sido comprada pelo Governo Federal e transformada em uma espécie de albergue e centro cultural. Ele havia adquirido uma outra casa mas não morava lá. A casa estava sendo habitada e administrada por sua irmã, Orlanda, e Paschoal morava em um hotel.

Logo após minha chegada, viajamos até Pati de Alfares, distrito de Miguel Pereira (RJ) onde ficava a Aldeia, e dei início ao trabalho de organização e classificação de um imenso acervo de fotos, cartazes, programas de peças, livros, textos datilografados etc. Sozinho, numa sala gigantesca, fiquei trabalhando, dia e noite, por um mês e meio, mais ou menos, período em que pude organizar tudo por tema e dispor de forma improvisada, pois não havia recursos técnicos nem financeiros para expor o material nas condições devidas.

Passamos o natal de 1977 juntos na Aldeia, conversávamos muito sobre história da cultura no Brasil, num convívio intelectual riquíssimo. Paschoal era um homem culto, oriundo do Instituto Rio Branco, um diplomada, um erudito de uma sensibilidade impressionante, uma certa melancolia mas também com um humor e uma generosidade comoventes. Ele sofria, entre outros males, de angina, e algumas vezes, em suas crises, tive de auxiliá-lo, colocando o comprimido sublingual que atenuava as fases agudas da doença. Estávamos ali somente eu, ele e um caseiro da fazenda, com a sua família, num espaço de grandes dimensões, e eu fico imaginando que se numa daquelas crises eu não estivesse por perto o Paschoal talvez tivesse morrido. Ele caminhava com dificuldade. Arrastava-se, praticamente. E nos momentos mais cruciais, ficava ansioso, irritadiço e imobilizado, sem condições mesmo de tomar providências para aplacar a angina. Era um visionário. Em sã consciência, não deveria estar ali nem morar sozinho, já que sua saúde exigia cuidados especiais. Entretanto, teimava em não se entregar aos achaques das doenças, com uma disposição quase suicida. Era emocionante para mim ver aquele mito do teatro brasileiro resistir, continuar sonhando, tentando levar adiante, sem grandes apoios, a Aldeia.

Tão logo dei por concluída a tarefa que eu me impusera, ele me escreveu uma carta belíssima, em manuscrito, com palavras de agradecimento que guardo até hoje como um troféu, e me disse:

- Queria pagar pelo seu serviço.

Eu não aceitei. E então, ele propôs:
- Leve um desses quadros da minha pinatoteca.

Em sua pinacoteca havia acervo de Pancetti, Di Cavalcanti, Aldemir Martins e um busto do próprio Paschoal, feito em bronze, obra de Humberto Cozzo. Eu escolhi a escultura e justifiquei minha escolha, dizendo:
- Vou colocar esse busto no acervo do Museu Cearense de Teatro, como uma homenagem a você.

E assim aconteceu. Ao chegar, de volta, a Fortaleza, instalei no foyer do Teatro José de Alencar a escultura. Paschoal veio para a inauguração, que coincidiu com o lançamento da revista "Dyonisos", com edição especial sobre o grupo Teatro de Estudantes do Brasil, publicada em 1978 pelo Instituto Nacional de Artes Cênicas. Quando ele morreu, em 1980, o B. de Paiva resolveu propor à Reitoria da UFC a adoção do nome Paschoal Carlos Magno para o Teatro Universitário. Ele queria que fosse Teatro Paschoal Carlos Magno. Eu, que sempre sou pela preservação, propus que se mantivesse o Universitário. E assim ficou: Teatro Universitário Paschoal Carlos Magno. O B. de Paiva criou também uma praça no pátio interno do Curso de Arte Dramática da UFC e eu tomei a iniciativa de doar à Universidade a escultura em bronze que o Paschoal havia me ofertado. Pensei que bem mais significativa seria a homenagem se a escultura ficasse para sempre naquele espaço público e não no acervo do Museu.

Quando no Teatro Universitário fizemos, sob a direção do B. de Paiva a peça "Cantochão Para Uma Esperança Demorada" (1980), o Teatro passou a se chamar Teatro Universitário Paschoal Carlos Magno e inauguramos a tal praça, em cujo centro figurava a imagem do Paschoal. Uma década depois, o próprio B., numa das muitas reformas que sofreu o Teatro Universitário, resolveu destruir a pracinha e levar para o hall do prédio a escultura do Paschoal. Hoje, a escultura está a um canto do pátio defronte ao Teatro Universitário, local que em 2010 denominei de Praça B. de Paiva.

A interseção de minha história de vida com a figura do Paschoal tem ainda outros episódios. Durante o período subsequente à minha atuação na Aldeia, ou seja, entre 1978 e parte de 1979, quando Paschoal vinha ao Ceará ficava hospedado na casa dos meus pais, onde, então solteiro, eu morava. Criou com a minha mãe, meu pai e com a Marina, uma espécie de segunda mãe que tenho, uma relação de intimidade que o fazia telefonar, nos aniversários deles, para dizer alguma mensagem de carinho. Foi na casa dos meus pais, por exemplo, que gravei uma entrevista com ele, entrevista que depois figurou no livro "Depoimento Pessoal" publicado pela Imprensa Universitária da UFC. Esta entrevista faz parte hoje do acervo do Museu da Comunicação, mantido pelo Nirez. Nela, um dos instantes tragicômicos foi a resposta que Paschoal me deu quando perguntei se ele, depois de tantos serviços prestados ao Teatro Brasileiro, ainda gostaria de fazer alguma coisa.
- Paschoal, qual o sonho que você quer realizar ?

E ele respondeu:
- Morrer.

Quando eu soube que ele morreu, em maio de 1980, telefonei imediatamente para o B. de Paiva e à noite, no dia da morte, nos encontramos no Teatro Universitário onde presenciei uma cena digna de filme: B. de Paiva arrancou uma das bambolinas pretas e cobriu a fachada do prédio, em sinal de luto.

 

Paschoal (Ricardo Guilherme)

Senhor de engenho e arte,
Pai irmanado, irmão patriarcal,
Menino antigo, homem grávido,
Matriz, aprendiz e aprendizado,
Força de Titã
Removendo bancos de areia
Nas quebradas da cidade,
Agrimensor nas fronteiras,
Geógrafo das sesmarias do sonho,
Dom Quixote fragílimo arquitetando
Pasárgadas,
Mecenas pobre,
Suicida cotidiano
Redivivo em tantos que fertilizou:
Um ditirambo te percorre a alma

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