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"Quanto mais você acessa o corpo, mais coisas surgem", diz a bailarina Rosa Primo
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"Quanto mais você acessa o corpo, mais coisas surgem", diz a bailarina Rosa Primo

Em seu espaço de criação, a pesquisadora em dança, bailarina e professora Rosa Primo investiga no corpo o processo político e afetivo de reinvenção do mundo
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""Na dança, a criação é fundamental. É como se o palco me desse a condição de estar presente. Estar na sala de aula também é assim; me dá uma força, uma energia, uma vontade de viver", afirma Rosa Primo (FOTO: JÚLIO CAESAR / O POVO) (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR ""Na dança, a criação é fundamental. É como se o palco me desse a condição de estar presente. Estar na sala de aula também é assim; me dá uma força, uma energia, uma vontade de viver", afirma Rosa Primo (FOTO: JÚLIO CAESAR / O POVO)

"Certas coisas se podem dizer com palavras, e outras, com movimentos. Há instantes, porém, em que perdemos totalmente a fala, em que ficamos totalmente pasmos e perplexos, sem saber para onde ir. É aí que tem início a dança". Na boca da coreógrafa e bailarina alemã Pina Bausch (1940-2009), grã-sacerdotisa da dança-teatro, o nascimento da dança é, sobretudo, explosão.

O alfabeto abriga 26 letras — 21 consoantes, cinco vogais —, mas a palavra ainda não é o bastante. O infindável balé de combinações não dá conta. Como letrar o corpo que, retorcido em si mesmo e emaranhado ao outro, expande-se e movimenta o mundo? Tarefa ingrata aos pesquisadores e jornalistas, como Rosa Primo. Para que ajustar o corpo aos grafemas dos sistemas de escrita, entretanto, se é possível dançar?

Rosa Primo é doutora em Sociologia, jornalista, pesquisadora em dança, bailarina, professora do Programa de Pós-Graduação em Artes e coordenadora dos Cursos de Bacharelado e Licenciatura em Dança da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Nascida na Fortaleza de 1972, Rosa rebentou ao mundo com os pés tímidos, voltados para si mesmos. Aos cinco anos, já usava bota ortopédica para corrigir a lesão — e foi entre prontuários médicos que a trajetória da bailarina se iniciou.

"A gente morava na Jovita Feitosa e lá tinha uma escola chamada Pavlova, a dona era uma bailarina que dançava com o Hugo Bianchi. Como eu usava bota, minha mãe me matriculou e eu fui ficando… Um dos professores sempre dizia que eu tinha que ir pro Hugo, que era uma academia maior, mais conceituada", relembra.

"Fui pro Hugo, que nessa época de 1980 ainda funcionava no Theatro José de Alencar. Depois passei muitos anos como aluna da Mônica Luíza, até a Madiana Romcy chegar do Rio de Janeiro e eu seguir com ela", complementa.

Bailarina de formação clássica, Rosa ensaiava seis, sete, oito horas por dia. Entre sapatilhas e pliés, conciliar dança e estudos era um desafio — mas, ávida por livros, a cearense decidiu mudar-se para São Paulo e cursar nível superior na capital paulistana.

"Entrei em Jornalismo na PUC e fiquei muito apaixonada. Pensei 'vou parar de dançar, meu sonho é ser jornalista, não quero mais saber de dança'". Como um pas de deux, contudo, a vida de Rosa se entrelaçou novamente ao movimento: na época, Educação Física era disciplina obrigatória no currículo e ela ingressou em uma turma de ginástica rítmica.

"Quando eu vi, já estava oito horas de novo dentro de uma escola de dança. Comecei a dançar com a Célia Gouveia, uma coreógrafa de São Paulo bastante importante. Ela tinha um grupo chamado Teatro de Dança e, pra mim, foi uma referência. Foi aí que eu me deparei com outro universo da dança que eu não conhecia, a dança contemporânea, porque até então eu era bailarina clássica, de ponta. A Célia me mostrou um mundo completamente diferente, inclusive de criação. Na dança contemporânea, o material vem do corpo da gente. Eu achei meu lugar".

Entre convites para dançar na França com Maguy Marin negados em meio ao fim de um casamento, idas e vindas de São Paulo a Fortaleza e até uma breve passagem pela redação do O POVO, Rosa Primo construiu a si mesma na dança.

Na capital cearense, tornou-se professora em escolas como Edisca e dedicou-se à academia — desta vez, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Rosa elaborou uma das primeiras pesquisas científicas sobre dança no Estado.

Em sua aventura autopoética, Rosa Primo mantém-se, sobretudo, atenta e forte.

"Quando você está com esse corpo nesse processo de invenção, a sua atenção é muito outra para a vida — de ficar atenta a tudo que se diz, a tudo que se faz, a tudo que se escuta. É como se você estivesse juntando material para dar conta de uma realidade que está ali. Invenção não quer dizer que é uma coisa que não dá em nada: é criação, é ir na realidade e ver o que importa naquilo para responder uma série de questões. Eu sempre pergunto aos meus alunos se eles escovaram os dentes escovando. A gente não está nos lugares, a gente faz tudo correndo. Isso é um exercício, atenção é hiper necessária para um processo de criação", defende.

"Na dança, a criação é fundamental. É como se o palco me desse a condição de estar presente. Estar na sala de aula também é assim; me dá uma força, uma energia, uma vontade de viver. O corpo treme, é um rebuliço, eu saio do palco pensando 'que energia é essa? Tudo está ligado ao encontro, ao desejo, à potência. Quanto mais você acessa o corpo, mais coisas surgem".

"Iracema" e "Tudo passa sobre a terra", espetáculos mais recentes de Rosa Primo, são frutos dessa cuidadosa observação de si e do outro — no processo de construção das obras cênicas, a intérprete-criadora se reconheceu também indígena e filha pródiga de múltiplas Fortalezas.

"Eu saí de Fortaleza para poder entender isso aqui. Eu não sei como ser o que eu sou hoje sem o lugar que estou. Minhas pesquisas, meu corpo, minha família, meu trabalho, meu tempo de produção, em tudo Fortaleza está presente".

A casa

A casa de Rosa Primo é, por excelência, ilógica, disparatada, contraditória, insensata, fantástica, ab-sur-da. Ao número 108 da Rua Isac Meyer, na Aldeota, a Casa Absurda recebe obras de teatro, dança, circo e música desde 2018, quando foi criada como sede dos grupos Pavilhão da Magnólia e a Cia. Prisma de Artes. “Não consigo me imaginar indo lá nem pra Itapipoca sem o Nelson Albuquerque e o Jota Jr., do Pavilhão da Magnólia, meus parceiros. Ensaio na Casa Absurda desde sua fundação e o meu processo criativo passa também por esse espaço físico porque é um lugar de invenção nessa Cidade, é um lugar de trabalho, de acontecimento. Eu olho para esse lugar e fico encantada com ele”, compartilha.
Nos tatames escuros, que recobrem o chão ao fundo da Casa Absurda, suor e sonhos se misturam em Rosa Primo. “É um absurdo, nos tempos que a gente vive hoje, existir um lugar incrível e feito com muito desejo por pessoas que estão a fim de fazer na contramão de uma série de coisas. É um lugar lindo, é um lugar aberto, é um lugar onde a gente trabalha duro e consegue dar conta porque somos equipe. A Casa Absurda, minha casa, é uma potência dentro da cidade de Fortaleza. A gente tem que olhar com muito carinho esse lugar que deve ser acolhido pela Cidade”.

Ensaios de morar

Na série "Como se fosse casa", o Vida&Arte se avizinha das casas de criação de cinco artistas em áreas diversas: a bailarina contemporânea Rosa Primo; o artista plástico Sérgio Gurgel; a designer de moda Marina Bitu; o dramaturgo Orlângelo Leal e o musicista Caio Castelo.

Passeamos pelos ateliês e espaços artísticos desses criadores, apresentando essas casas em devir que guardam memória e atravessam os limites físicos dos pisos, tetos e paredes ao disseminar arte e cultura como janelas. Nas palavras do escritor cearense Eduardo Jorge, "Como se casa fosse/ a casa, como se a casa fosse/ fóssil, casca, espaço físsil/ momento preciso, decisão/ de cisão do mundo".

Confira a série completa clicando aqui

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