O drama de uma indiana nos Estados Unidos entre suas tradições e suas angústias tipicamente adolescentes ganham vida e uma boa dose de humor no seriado da Netflix, "Eu Nunca…". Livremente inspirada na juventude - trágica, se não fosse cômica - de Mindy Kaling, conhecida por "Projeto Mindy" e "The Office", a série equilibra sexualidade, triângulos amorosos, traumas, temáticas étnico-raciais e mais uma lista de questões com humor e uma execução exemplar.

A protagonista é Devi (estrelada por Maitreyi Ramakrishnan), uma adolescente de origem indiana que acumula uma série de questionamentos no currículo e uma ousadia (além de uma petulância) indescritível. Após a morte de seu pai em meio a um concerto da escola, a garota passou por uma espécie de estresse pós-traumático que a fez perder a mobilidade das pernas, efeito que durou meses e marcou sua identidade. Entretanto, já andando normalmente, Devi quer reconstruir sua imagem, limpando seu passado e buscando um futuro na escola que seja, bom, "popular" (afinal, estamos falando de uma série adolescente, certo?).

Com seu crescimento repleto de autodescobertas, ela se vê encurralada entre as regras restritas de sua mãe e o seu desejo de "conhecer melhor" sua paixão platônica, o meio-japonês Paxton, e finalmente perder a virgindade - o ponto que dá início a todas as narrativas do seriado.

Imprevisível, Devi faz jus ao título de protagonista, principalmente por seus inúmeros erros, que apesar de irritantes, são extremamente reais, criando identificações nas suas mais diversas camadas de personalidade. O holofote também segue seus companheiros de cena, também complexos, que vão se desenvolvendo a cada episódio: a prima indiana aparentemente perfeita, as amigas leais e complexas, o "nêmesis" Ben e, claro, o próprio Paxton.

E para além da trama, a série também acerta por meio de seus recursos narrativos, que seguem uma inovação cômica (apesar de não quebrarem a "quarta parede" como a finada "Daybreak", de 2019, cancelada após a primeira temporada). A série é narrada pelo tenista alemão John McEnroe, com exceção de um episódio, que conta com a participação de Andy Samberg (o famoso Jake Peralta). Além disso, não poupa nas referências pops que chegam a ser hilárias, como o livro "After", de Anna Todd, o aplicativo TikTok, o seriado "Riverdale", etc. Mas claramente a cena de ouro da metalinguagem acontece no sonho da garota, em uma referência ao filme "Para Todos os Garotos que já Amei".

E não seria justo não dar créditos pela diversidade perfeitamente encaixada no seriado, que inclui raça, etnia, gênero, religião, classe etc. Inclusive, a mistura faz com que a história seja muito mais natural, dando ênfase também nas crises de identidade, que ganham sentido pelo coletivo de diferenças.

E além disso, a noção que tudo isso foi abordado em episódios de pouco mais de 20 minutos, sem se tornar cansativo ou inverossímil, é um ponto a se destacar para o roteiro. Divertido, "Eu Nunca..." é feito para maratonar. Diferente de "Sex Education", que exala um clima mais pesado, o seriado trata todos os assuntos com mais leveza, sem esquecer da seriedade de alguns temas, mas destacando-os exatamente pela ironia.

E para reiterar, o sucesso da série também é refletido em sites especializados. A produção conquistou a marca de 96% de aprovação da crítica no Rotten Tomatoes - uma porcentagem admirável. E, em tempos de quarentena, assistir a um semi-clichê adolescente, mas ao mesmo tempo maduro, é uma pausa merecida. Já no aguardo de uma segunda temporada.