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Um jardim de Chita
Vida & Arte

Um jardim de Chita

Conhecida pelos europeus quando ainda buscavam as especiarias no Caminho das Índias, a chita cruzou continentes e se firmou no Brasil, onde expressa regionalismo, tropicalidade e colore o período junino
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O prato é Farm, que tem a chita em seu DNA (Foto: Reprodução/https://www.farmrio.com.br/)
Foto: Reprodução/https://www.farmrio.com.br/ O prato é Farm, que tem a chita em seu DNA

A história por trás da chita talvez nem desconfie. "Ela não é de origem brasileira, mas acabou se tornando parte da nossa cultura", conta Bia Queiroz, designer de superfície, formada em Design de Moda. No início, para adquiri-la, só se tinha um jeito: cruzando o caminho das Índias. Assim, era trazida pelos europeus, que viam beleza no artigo, bastante florido porque, devido à religião do país de origem, não se podia representar nada figurativo e de cores vivas como as especiarias indianas; o açafrão e o curry, por exemplo.

Na Índia, conhecia-se como "chint". Mas claro que não ficou só neste nome. Há outros. No Brasil, pegou mesmo a chita (bem semelhante). Mais tarde, seus derivados: chitinha (flores menores), chitão (flores maiores). Dizem que a última é legítima do Brasil. Se é, está no livro de Ronaldo, o Fraga, estilista mineiro.

A esta popularização, Luz Garcia Neira diz respeito. É autor da tese "Estampas na tecelagem brasileira, da origem à originalidade" (2012). Na pesquisa, relata que os tecidos estampados - no Brasil, com carimbos, em "chitarias" - não tinham boa aceitação no alto comércio (Rio e SP) e eram vendidos mais no interior, principalmente no sertão. Por isso ligada ao setor rural e como estética do campo? No Nordeste, bastante. "Usavam como toalhas de mesa e como roupa", cita Bia, como era antigamente.

Ao longo do tempo, porém, mudanças. Ainda que recorrente, a chita foi deixando de ser um tecido utilizado somente pela população mais pobre ou em manifestações populares, apenas. "Através das estampas, podemos retratar a chita de várias maneiras e em diferentes tecidos, dando uma maior versatilidade de uso", lembra Bia, que lista além de na decoração de interiores, em eventos e na moda também. "Elas dão um ar mais brasileiro, tropical, divertido e alegre", confere aos seus trabalhos.

Para Dayane Oliveira, designer de superfície do @meujasmimestampa e estilista, que cresceu com a estética da chita, nas chegadas de São João o que a move é ressignificá-la. No desafio, a mestranda em Administração de Empresas, etapa onde dá sequência ao estudo de estampa, encara a própria essência. "É trazer a nossa flora, que é tão rica, do nosso Ceará, do nosso Nordeste, e criar lindas aquarelas", propõe a um equilíbrio comparando as fases de um cacto, espinhoso, rígido, que em época de chuva, faz florescer. "A minha inspiração é justamente essa. Também é o que eu acredito sobre a chita", define unindo delicadeza e força; cultura e tradição ao novo. "Design de chita", como conceitua.

Coleção Nó.Destino, apresentada por Lindebergue Fernandes
Coleção Nó.Destino, apresentada por Lindebergue Fernandes

Novo de novo

O encontro mais icônico foi há quase dez anos. Nas palavras de Lindebergue, como se fosse hoje. Foi quem enxergou beleza em um trabalho puramente artesanal, feito de chita, por artesãs paraibenses, chamadas "As Cabritas". "Junto a um tear construíram um tecido tramado que tem a aparência do Tweed, um tecido de lã, de textura macia, aberta e flexível; muito usado pela a estilista Chanel", relaciona à arte de filetar. A técnica - com tiras de chita - foi utilizada no desfile de 2011 no DFB. Deu vida à "Nó.Destino", que tinha como objetivo a valorização do artesanato de raiz do Nordeste. "As peças causaram grande impacto na passarela e nas pessoas ao saberem que o tecido era chita", lembra-se Lindebergue, que lamenta ainda ter de desmistificá-la. "Muito me entristece ver essa estampa tão característica da nossa história sendo substituída por outros tecidos nas quadrilhas juninas. Ela transmite e leva história e cultura do sertão nordestino para nossas cidades", reverencia.

Sônia Braga na personagem Gabriela (1975), de Jorge Amado
Sônia Braga na personagem Gabriela (1975), de Jorge Amado

Sucesso televisivo

Se, na década de 1970, de "Gabriela" na TV, a estampa veio à tona foi por causa dela. Ou de Gabriela, uma das personagens mais famosas de Jorge Amado ou de sua intérprete, a original, Sônia Braga, antes de Juliana Paes. Desconfia-se que a junção de ambas. De Gabriela (Sônia) e o vestido de chita, pela primeira vez, no ar. Era então oficial: acendia-se, naqueles anos, mais um dos capítulos da chita, atribuída ao figurino de flor mulher; "Cravo e Canela". Adições a um arquétipo, assim, eternizado; da modinha de Gabriela, ainda no imaginário: "Vestidos pendurados no armário, em casa ela andava de chita, em chinelas ou descalças", era clara a preferência. Mas, do livro (1958) à cena, uma diferença: "Para envelhecer o vestido de chita que ela usava quando chegou a Ilhéus, Marília Carneiro e o maquiador Eric Rzpeck usaram pó-de-arroz e óleo fino". Eis o segredo, que não é mais. Memória Globo.

Rede de Chita Balancê Redes Artesanais. Entrega via delivery
Rede de Chita Balancê Redes Artesanais. Entrega via delivery

É tradição

Mesmo de origem distante, não arreda o "pé". Por ocasião, destino ou coisa assim, num é que ficou? É há tempos um retrato deste "Brasilzão". Une aqui, como acolá. Jeitinho brasileiro e nordestino, para Robson Ângelo de Lima, da Balancê Redes, que tem como destaque uma de chita, é claro, tudo a ver. "Nossa diversidade e alegria de viver", atribui ao modelo, que avisa: "Sua dupla face ressalta nossa resistência e capacidade de inovação", percebe Robson. A empresa, familiar, começou há quase 50 anos com o pai. Hoje é ele quem responde. Apesar de não ser a fabricante, orgulha-se do legado. "Uma vez que conhecemos a rede Chita, assim como nossos clientes, ficamos encantados por sua beleza e pela forma como ela nos representa". A quem interessar, vai gostar.

Pinguim (encapado de tecido manualmente). Sob consulta. Instagram @thalesangert
Pinguim (encapado de tecido manualmente). Sob consulta. Instagram @thalesangert

Chita por que te quero

Sabe os pinguins da imagem? São criação dele, Thales Angert. Cearense das habilidades manuais. Faz de mochila a acessórios e artigos décor (os pinguins, banquinhos, que vimos no Instagram, etc). E o detalhe, já percebeu. Usa ou faz alusão à chita, como é o caso do par de charme, um virado ao outro. Se quiser um ou uma das mochilhas, com a identidade Angert, porém, terá de aguardar. Em meio à pandemia, o estoque, que já era limitado, tornou-se mais. "Mas estou estudando a melhor forma, segura, de voltar", adianta Thales, que continua dando atenção no on-line, por meio do Instagram. Em breve, em um site. "O tempo é outro em relação à produção de peças artesanais feitas à mão, não tem como ter estoque grande. São peças únicas e feitas quando existe matéria-prima (retalhos) oriundos de outras criações. Valorize o artesanal", argumenta sobre seu propósito como marca ateliê, desde o início, quando começou com roupas, há quase dez anos. "Sempre utilizava os retalhos". "Até hoje 95% dos nossos resíduos são reaproveitados de forma criativa e sustentável desenvolvendo novos produtos", ajuda a repensar.

Curiosidades

O chitão é variação brasileira. Começou a ser confeccionado nos anos 1950.

Na TV, até Chacrinha vestiu-se de chitão.

As estampas miúdas ganham o apelido chitinha-mamãe-dolores, por causa de uma personagem da novela "Direito de Nascer".

Clara Nunes, antes de sambista, foi funcionária da principal indústria de chita no Brasil, Cedro & Cachoeira em MG.

O "flower power" do movimento hippie também influenciará o uso da estampa.

Antigamente, era comum pedir por "fazenda"; maneira de se referir aos tecidos estampados. A chita era modalidade barata da confecção.

As bonecas de pano são tradicionalmente feitas de retalhos; alguns deles de chita. Faz-se ainda fuxico, almofadas, todo tipo de artesanato.

Carmem Miranda, Frida Kahlo, também têm sua imagem associada à chita.

Além de lançar um livro sobre, Ronaldo Fraga já incluiu o tecido em seus desfiles. Na moda, a chita - volta e meia - é revisitada.

(Com informações do "Almanaque Brasil", 2009)

O preconceito mora ao lado

Está tão visível quanto é, a alguns, invisível. Está, por "engano", arraigado; nem percebe-se às vezes. Dia desses, antes da pandemia, fui comprar a tal da chita. Além de escrever, costuro, um pouco, mas costuro. Pensei em um vestido fresquinho para ficar em casa. Pensei na chita, por que não? A diferença de ontem para hoje é que o tecido anda mesclado. Pode encontrá-lo com % de poliéster, que já não fica tão agradável para roupa. Tudo bem. Criatividade a gente tem de "ruma". Confecção de almofadas, cortinas, em decoração... Mas quem que quer? E o preconceito, acima anunciado? Partiu de quem me acompanhava às compras. Resumo: a cultura da chita ainda desvalorizada. Associada a uma escassez quando que ela mais passa é abundância. Contradição? Está nas roupas das namoradeiras, que também já deve ter ouvido falar. Moças - geralmente negras - para se pôr estátua em janelas. Um bom partido ou uma fofoca fresquinha? É cultural. Mas os tempos são outros. Há novas formas de se ver. Refletir para educar pode até ser. Qual seu imaginário sobre a estampa e artigo de chita? Se ajudar: vai além de São João.

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