Existe um elo que conecta os grandes poetas: a necessidade inerente - talvez compulsória - de escrever. Diferentes movimentos e estilos se assemelham por meio das pessoas que, sem o ofício, não conseguiriam externalizar os sentimentos que emergem de seu espírito. Essa mesma ânsia pelas palavras era o que movimentava a vida de Carolina Maria de Jesus (1914 - 1977), que teve seu primeiro livro, "Quarto de Despejo", publicado há 60 anos.
Nascida em Minas Gerais, no início do século XX, a escritora se mudou para São Paulo ainda cedo, onde se tornou empregada doméstica. Logo passou a catar lixo para conseguir sustentar seus três filhos no Canindé, a primeira grande favela da cidade paulista. Seu maior sonho era ser poeta e escritora. Por isso, manteve um diário sobre o dia a dia que vivenciava, mesmo que não tivesse domínio (gramatical) da língua portuguesa.
"No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os politicos fraquissimos. E tudo que está fraco, morre um dia… Os politicos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido". Com um forte senso de justiça, o pensamento de Carolina Maria de Jesus mostra quem ela foi em vida: uma mulher que representa e reconstrói a memória de milhões de brasileiros ignorados pela sociedade.
Suas palavras se tornaram conhecidas no Brasil e em diversos países do mundo por causa de um intermediador: o jornalista Audálio Dantas. Na época, o profissional estava encarregado de fazer uma matéria sobre a favela no bairro do Canindé quando conheceu a poeta. "Lá, no rebuliço favelado, encontrei a negra Carolina, que logo se colocou como alguém que tinha o que dizer. E tinha! Tanto que, na hora, desisti de escrever a reportagem", relata o profissional no prefácio de "Quarto de Despejo". "Li, e logo vi: repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor que aquela história - a visão de dentro da favela", completa.
A história de Carolina é atemporal. Considerada uma das primeiras autoras negras do Brasil, perpassa a desigualdade social, o racismo, a pobreza e a crítica aos políticos por meio de uma reflexão pessoal. "Os norte-americanos são considerados os mais civilisados do mundo e ainda não convenceram que preterir o preto é o mesmo que preterir o sol. O homem não pode lutar com os produtos da Natureza. Deus criou todas as raças na mesma epoca. Se criasse os negros depois dos brancos, aí os brancos podia revoltar-se", defende a escritora.
"Quarto de Despejo" é um relato da violência que a população negra e pobre tem que enfrentar ainda hoje. Seis décadas se passaram, mas as imagens que a autora evoca continuam reais. "Até vocês, feijão e arroz, nos abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes. Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está ao alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo", desabafa em um dos trechos.
A obra rompeu com o que era comum no mercado editorial da década de 1960. Com o costume de fazer uma tiragem de até três mil exemplares, em poucos meses, o livro chegou a 100 mil. De repente, a mulher negra, da favela, foi considerada quase um objeto de consumo. "Ela narra que ficou muito triste quando chegou na livraria no dia do lançamento e viu uma faixa gigante com 'terra da favela' na vitrine em que estava seu livro. Ela se sentia muito mal com essa associação que até os dias de hoje ainda é muito acometida", afirma a doutora em Teoria e História da Literatura, Raffaella Fernandez.
A pesquisadora, que em 2019 lançou o livro de sua tese "A poética de resíduos de Carolina Maria de Jesus", comenta que a temática que a autora trouxe na primeira obra era extremamente desconhecida entre a classe média da época. "O Audálio Dantas começou a publicar partes dos textos do diário no jornal já para criar uma expectativa sobre o que seria essa vida na favela, algo ainda muito novo nos anos 50. As pessoas não tinham esse contato direto e tão explícito que a escrita da Carolina possibilitava", explica a docente.
Tão repentino quanto o sucesso que obteve durante a estreia foi o apagamento de suas memórias ao longo dos anos. Karina Morais, mestranda em Literatura Comparada na Universidade Federal do Ceará e participante do grupo de estudos "Marielle - Marxismo e Literatura", atribui a situação a três fatores principais. "'Quarto de Despejo' foi apreciado com muito exotismo, era inesperado. Era de uma mulher negra e favelada. Não se imaginava que essas mulheres poderiam se considerar escritoras. Uma segunda motivação foi a Ditadura Militar e toda a repressão que teve com obras que falavam sobre a realidade do País. Um outro motivo é que a Carolina foi aceita enquanto escritora de diários, não uma produtora de literatura", analisa.
Sua história, porém, resiste. Diariamente reage à sociedade que tenta esquecê-la por meio da narrativa que criou para si e para o povo que representa. "Quando a gente lê o 'Quarto de Despejo', a gente se coloca diante da pergunta de como é possível escrever em condições tão adversas. Há a resiliência, essa profunda dedicação em narrar. Escrever sempre foi uma arma mais potente para Carolina. Com ela, a gente aprende sobre o narrar para existir, para continuar vivendo", considera Karina Morais.
A escritora já sabia em sua primeira obra: "A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro". Depois de ter visto a vida completa de Carolina Maria de Jesus, foi possível perceber: era uma grande poeta, movida pela necessidade compulsória de escrever o mundo. Tornou-se um clássico.
O resgate da história
Carolina Maria de Jesus não escreveu apenas “O Quarto de Despejo”. Em sua trajetória, colecionou, no mínimo, cinco mil páginas de originais, de acordo com a pesquisa de Raffaella Fernandez. Ainda em vida, foram publicados “Casa de Alvenaria”, “Pedaços e Forme” e “Provérbios”, que não tiveram o mesmo sucesso do primeiro.
“Carolina sempre foi muito valorizada enquanto uma autora de um testemunho sobre a vida e as mazelas da favela. A partir do momento em que ela começa a querer ser reconhecida como escritora de romance, poemas, peças de teatro, ela começa a ser ignorada”, afirma a pesquisadora. Por causa de sua potência poética e importância, Raffaella Fernandez continua um constante trabalho de resgate e visibilização da história da autora.
Já organizou dois livros póstumos da escritora. O primeiro, em 2014, foi “Onde Estaes Felicidade”. Quatro anos depois, lançaria “Meu Sonho É Escrever”. “Quando falam da autora, falam muito de ‘Quarto de Despejo’, ignorando toda a produção literária dessa mulher que, ao longo de mais de 22 anos de pesquisa, eu pude recolher e explicar”, demonstra Raffaella Fernandez.
“Carolina cria uma espécie de poética de resíduos, onde ela vai recolhendo diversos gêneros literários e não literários no seu processo de criação, que parte também de um autodidatismo. Sobretudo, de um aspecto oral do qual ela fazia parte por meio de suas experiências com a comunidade”, explica a pesquisadora.
Poesia de Carolina
Muitas fugiam ao me ver
Pensando que eu não percebia
Outras pediam pra ler
Os versos que eu escrevia
Era papel que eu catava
Para custear o meu viver
E no lixo eu encontrava livros para ler
Quantas coisas eu quiz fazer
Fui tolhida pelo preconceito
Se eu extinguir quero renascer
Num país que predomina o preto
Adeus! Adeus, eu vou morrer!
E deixo esses versos ao meu país
Se é que temos o direito de renascer
Quero um lugar, onde o preto é feliz.
Carolina Maria de Jesus, em "Antologia pessoal", organizado por José Carlos Sebe Bom Meihy, em 1996