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"A rua é onde eu colho a substância, mas eu devolvo pro espectador", diz Orlângelo Leal
Vida & Arte

"A rua é onde eu colho a substância, mas eu devolvo pro espectador", diz Orlângelo Leal

Multiartista e diretor do grupo Dona Zefinha, Orlângelo Leal fez da rua palco e de casa abrigo para a arte que pulsa em Itapipoca
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"Eu sempre tirei nota baixa, até em Religião, mas o meu primeiro 10 foi quando eu montei um grupo de teatro no colégio com os colegas do fundão", lembra Orlângelo Leal (FOTO: JÚLIO CAESAR / O POVO) (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR "Eu sempre tirei nota baixa, até em Religião, mas o meu primeiro 10 foi quando eu montei um grupo de teatro no colégio com os colegas do fundão", lembra Orlângelo Leal (FOTO: JÚLIO CAESAR / O POVO)

Filho de pai policial militar e mãe professora, Orlângelo Leal, 45, cresceu entre Juazeiro do Norte e Itapipoca, cigano, galego, pedrês. Criou-se no meio da rua, no redemoinho de soluço e espasmos, engolindo com olhos curiosos os reisados que se anunciavam de porta em porta. "Ô, senhor dono da casa, abre a porta e deixe entrar". Ainda menino, sentiu nos nervos o mistério da criação. Multiartista, intérprete-criador e diretor do grupo cênico-musical Dona Zefinha, Orlângelo Leal é fronteira.

"Tudo começou na escola", relembra Orlângelo. "Eu sempre tirei nota baixa, até em Religião, mas o meu primeiro 10 foi quando eu montei um grupo de teatro no colégio com os colegas do fundão para uma atividade da disciplina OSPB, Organização Social e Política do Brasil. O assunto era manicômio, então eu fui para casa, escrevi o texto, dirigi, atuei. O nome da peça era 'Loucos não somos nós'". O interesse pelas artes cênicas, entretanto, cresceu em Orlângelo bem antes: a mãe, Angelita Maria, sempre foi uma sanfoneira de mão cheia. O pai, afeito ao pandeiro, também entretia os filhos Orlângelo, Ângelo Márcio e Paulo Orlando com shows de mágica. "Nada profissional, tudo muito livre". Quando o primogênito Orlângelo completou oito anos, a trupe se debandou para Itapipoca, experimentar a cidade dos três climas. 

A casa de Dona Josefa — Dona Zefinha para os mais chegados — foi, durante décadas, o firme nó entre Orlângelo Leal e Juazeiro do Norte. "Dona Zefinha é uma mulher negra, cearense, costureira, mãe de cinco filhos e vizinha da minha mãe. As filhas dela, Bernadete e Edna, sempre me levavam para as coisas legais que tinham em Juazeiro. Eles todos me mostraram referências", explica o artista. No período de férias escolares, o então pequeno Orlângelo se esforçava para não ficar de recuperação só para não perder a visita ao lar da antiga vizinha. 

Autodidata, Orlângelo Leal começou a se conectar com grupos artísticos de Itapipoca ainda durante a adolescência. "Eu era muito influenciado pelo rock dos anos 1980, pelo teatro… Logo comecei a fazer mímica imitando Charles Chaplin, o Chaplin me levou a palhaço e, sem intenção, tudo foi fluindo e acontecendo", continua o vocalista da Dona Zefinha. Em 1994, criou a Trupe Metamorfose ao lado dos irmãos — um grupo de palhaçaria e teatro musical. A obra "Retrato em Preto e Branco" foi apresentada até no Festival de Teatro de Guaramiranga, mas foi o espetáculo "O Auto da Camisinha" que apresentou ao artista a mais importante parceria de seu trajeto artístico: a rua.

"A rua é um espaço democrático, livre. É na rua que eu colho personagens, que eu colho histórias, que eu colho poéticas para composições. A rua é onde eu colho a substância, mas eu devolvo pro espectador. Na rua, eu tenho um diálogo de 360 graus. Tem gente em cima do prédio, tem gente ali atrás trabalhando e assistindo. Um artista que trabalha na rua expande sua capacidade expressiva, de comunicação, de diálogo. É um exercício de expansão do sensorial: do olho, do ouvido, do olfato, do tato, da dinâmica da fala. As pessoas interagem, mandam", compartilha Orlângelo.

Assista webdoc do projeto Como se Fosse Casa, com Orlângelo Leal

A rua, feito ruga na paisagem urbana, é por excelência o lugar do múltiplo. Na pluralidade de ébrios e trovadores à deriva, Orlângelo conheceu a cultura popular. "E a cultura popular fundou a Dona Zefinha em 2000", resume. Entre 1997 e 1998, o artista mudou-se para Fortaleza a fim de estudar direção teatral com Herê Aquino e permaneceu na Capital até 2010. Pagava as contas fazendo trabalhos como clown em shoppings, atuando na palhaçoterapia em hospitais e até substituindo o Palhaço Trepinha na porta do Theatro José de Alencar. "Eu pensei: 'eu não vou arrumar um emprego para fazer teatro! Eu vou viver da arte'", projetava. No torvelinho da criação, reuniu diversas composições e o trio — composto pelos irmãos — lançou o primeiro álbum do grupo Dona Zefinha em 2001, "Cantos e Causos".

"O mais fácil de explicar o que é a Dona Zefinha: é ter música e a cena junto; é um grupo cênico-musical. Numa das críticas que recebemos em Recife, o repórter começou o texto dizendo 'os musicômicos do grupo Dona Zefinha'. Eu achei essa palavra incrível! É palhaço, é música, é uma fronteira". Em 2002, Orlângelo casou com Joélia Braga e ela ingressou no grupo, tornando-se figurinista e a primeira voz feminina da companhia. "Entre 2004 e 2007, a gente rodou muito. Dona Zefinha caiu na moda", relembra Orlângelo. Aos 25 anos de carreira, já rodamos bastante Brasil, América Latina, Europa... Visitamos 13 países e apresentamos em todos os lugares uma bagagem", complementa.

"É muito intuitivo meu processo criativo. Eu posso estar dirigindo e, de repente, estou compondo. Acontece muito estar num lugar e esse lugar abrir um canal... Eu gravo no celular, anoto. Eu geralmente não sento para compor; vem a primeira estrofe e daqui a três dias chega a segunda estrofe. É totalmente ligado à vida mesmo. Mas quem paga minha vida é Orlângelo artista de palco, é esse cara que está com violão na mão, nariz de palhaço e figurino". Entre tanta vida vivida, Orlângelo Leal promete: "Eu quero fazer outras coisas, eu quero me aventurar em outros lugares". No palco, na praça, no circo, num banco de jardim — mas sempre na rua.

A Casa

A casa de Orlângelo Leal é casa de uma cidade inteira: criada em agosto de 2011 em Itapipoca, a Casa de Teatro Dona Zefinha é um centro cultural que reúne da história do grupo — contada em fotos, murais e jornais nas paredes — a atividades de formação, fomento e difusão de espetáculos de música e teatro. O espaço oferece também abrigo a grupos mambembes e já recebeu companhias de regiões como Paraíba, Rio Grande do Sul, Bahia, São Paulo, Pernambuco, Canadá, Argentina, Colômbia, Peru e Estados Unidos.

"A Casa de Teatro Dona Zefinha é um divisor de águas. Esse espaço surge no momento em que estávamos com bastante equipamento, vários espetáculos e não tínhamos um local de ensaio, não tinha sequer onde guardar tudo e ficava complicado... Daqui a pouco, esse espaço começa a realizar uma intervenção numa cidade que não tem uma programação cultural no aspecto da gestão pública. A Casa realiza a função de colocar Itapipoca no circuito das artes. Por aqui já passaram mais de 100 artistas de teatro, de banda, de circo...  Uma casa que hospeda, que alimenta, que dá um apoio. As ações da Casa de Teatro Dona Zefinha acontecem dentro da casa também, trazendo o público pra cá e também atuando nas periferias, nos bairros, nos estudos, levando para comunidades ainda virgens para apresentar", diz Orlângelo.

Ensaios de Morar

Na série "Como se fosse casa", o Vida&Arte se avizinha das casas de criação de cinco artistas em áreas diversas: a bailarina contemporânea Rosa Primo; o artista plástico Sérgio Gurgel; a designer de moda Marina Bitu; o dramaturgo Orlângelo Leal e o musicista Caio Castelo.Passeamos pelos ateliês e espaços artísticos desses criadores, apresentando essas casas em devir que guardam memória e atravessam os limites físicos dos pisos, tetos e paredes ao disseminar arte e cultura como janelas.

Confira série completa clicando aqui

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