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"Coisa Mais Linda" chega à segunda temporada trazendo novos debates
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

"Coisa Mais Linda" chega à segunda temporada trazendo novos debates

Elenco de "Coisa Mais Linda" adianta temas e reflexões sobre a segunda temporada da série da Netflix
Tipo Notícia
A série abre mais espaço para personagens pretas na segunda temporada (Foto: Aline Arruda / Netflix)
Foto: Aline Arruda / Netflix A série abre mais espaço para personagens pretas na segunda temporada

Uma das produções brasileiras da Netflix, "Coisa Mais Linda" estreou em 2019 trazendo quatro mulheres no protagonismo e, junto delas, tramas envolvendo diferentes questões do feminismo. Apesar da relevância dos temas, a obra acabou questionada acerca da falta de profundidade de Adélia (Pathy Dejesus), única negra entre elas. Para a segunda temporada, a série intenta reparar o erro. Tanto que, na rodada de entrevistas que a Netflix promoveu com parte do elenco para a promoção da sequência da história, o grande assunto tratado por Gustavo Machado, Ícaro Silva, Larissa Nunes e Maria Casadevall foi a abordagem que a atração - que chega ao streaming amanhã, 19 - deu às personagens pretas, garantindo mais espaços e subjetividades. Apesar de ainda inicial, o movimento de mudança na série é celebrado pelos intérpretes.

"A gente explora de uma forma que considero muito bonita e necessária o afeto preto. Temos personagens novos no núcleo da Adélia e do Capitão e exploramos as dinâmicas de afeto entre eles", adianta Ícaro Silva, que dá vida ao personagem citado. Se na primeira parte de "Coisa Mais Linda" somente o casal tinha mais espaço, a segunda temporada aposta na entrada do amigo Miltinho (Breno Ferreira), do pai de Adélia, Duque (Val Perré, que compõe o elenco do ainda inédito longa cearense "Cabeça de Nêgo"), e da mãe de Capitão, Elza (a icônica Eliana Pittman), bem como em uma trama voltada à irmã de Adélia, Ivone (Larissa Nunes).

Ivone (Larissa Nunes), irmã de Adélia (Pathy Dejesus), ganha uma trama própria na continuação da série
Foto: fotos Aline Arruda / Netflix
Ivone (Larissa Nunes), irmã de Adélia (Pathy Dejesus), ganha uma trama própria na continuação da série

A personagem guarda consigo o desejo de investir na carreira de cantora, numa trama que, na essência básica, replica a trajetória vista na primeira temporada com Lígia (Fernanda Vasconcellos). Apesar da "repetição" narrativa, as tramas têm diferentes abordagens. Enquanto Lígia teve que enfrentar o violento e conservador marido para perseguir o sonho, a luta da personagem de Larissa é marcada por outras pautas e demandas. "A Ivone vai amadurecendo esse desejo de ser cantora, tendo muita consciência de que não vai ser fácil, de que ela é uma mulher negra dos anos 1960. Se a gente pensar na história das grandes cantoras brasileiras que passaram por isso, como a Elza Soares, elas tiveram grande dificuldade nesse mercado cheio de homens, racista, então acredito que (a trama) vem trazer esse debate um pouco mais aprofundado", considera Larissa.

A atriz ainda celebra a conexão entre o maior espaço de personagens pretas na série com o atual contexto dos protestos antirracistas. "Muito daquilo que estava sendo colocado lá atrás, nos anos 1960, retorna. É um passado que não passa, uma estrutura racista que sempre esteve ao nosso lado. Um diferencial dessa segunda temporada na dramaturgia em si tem muito a ver com a autonomia que Adélia e Ivone começam a ter em relação a suas escolhas, sonhos, anseios. Uma diferença gritante, maravilhosa, que se propõe é a ampliação do núcleo negro, contar essas mulheres com as suas referências. A série dá luz a esse debate que precisa ser continuado pelo público. Acho bem oportuno", afirma.

Em diálogo com o olhar histórico trazido por Larissa, a atriz Maria Casadevall, que interpreta Maria Luísa, completa: "A série expõe uma linha contínua desse sistema estruturado por opressões de raça, classe, gênero que não começou nos anos 1960, é de 500 anos de opressões e violências. O que estamos assistindo em 2020 é o que a gente assistiu em vários momentos, a adesão popular a várias lutas que são permanentes na história do nosso País. A série aponta essa analogia entre os tempos. A gente não estaria aqui se lutas não tivessem acontecido nos anos 1960, no século 19".

"Como espectador, é muito rico de ver a quantidade de personagens pretas que entraram na história. Das protagonistas, hoje são duas pretas, com seus familiares, relações, lares. É bom de ver, tomara que sirva de exemplo para as dramaturgias", torce Gustavo Machado, o empresário Roberto na série. "Eu venho do teatro, de uma cena diferente, e a gente vê muitos atores tendo que viver e reviver papéis próximos de estereótipos, sem possibilidades de subvertê-los e trazer outra discussão. A série traz o debate com cuidado, entendendo os limites de cada abordagem de tema", reforça Larissa.

Ponto de vista: contexto e discurso

O discurso do elenco de "Coisa Mais Linda" na promoção da segunda temporada da série reforça muito a ligação da obra com o contexto atual em que a pauta antirracista vem dominando as ruas e espaços de discussão desde o assassinato de George Floyd, homem negro, por um policial branco nos Estados Unidos. A abertura à pauta é, obviamente, bem-vinda, mas é interessante complexificar o discurso ao observar o histórico de divulgação da série e, também, a trama que se desenrola nos quatro primeiros episódios da temporada, disponibilizados pela Netflix à imprensa.

A primeira temporada estreou em 22 de março de 2019 prometendo trazer à tona temas como o espaço feminino no mercado de trabalho, relacionamentos abusivos, aborto. Naturalmente, foi ligada ao feminismo por jornalistas e público. No entanto, em entrevistas promocionais, figuras dos bastidores da série ressaltavam que a palavra “feminismo” não era utilizada em momento algum no roteiro e defendiam que a abordagem não era “óbvia”, “ativista” ou até um “levantar bandeira”.

As falas mostram uma tentativa de afastar qualquer pecha política da obra. Naquele momento, o governo Bolsonaro estava apenas começando e, é possível arriscar, os criadores talvez não quisessem ter a série “afetada” aos olhos de um potencial público que fosse apoiador do presidente - logo, contrário a qualquer menção ao feminismo. É por isso que surpreende o discurso de promoção da atual temporada, contrastado com o anterior justamente por aproximar o contexto global de um movimento dramatúrgico da série - neste segundo ano, ela abriu-se para mais personagens e subjetividades pretas.

Nos quatro primeiros episódios, Adélia (Pathy de Jesus) e Capitão (Ícaro Silva) ganham família e Ivone (Larissa Nunes), irmã dela, empreende uma trajetória própria. Há eventos sociais em que as personagens pretas são o centro, há conversas pessoais entre elas. É um movimento bem-vindo, repita-se, ainda que “Coisa Mais Linda”, apesar de vender a ideia de que tem quatro protagonistas, ainda exista muito em torno de Malu e sua visão. Sem adiantar detalhes, porém, há como esperar que as tramas de Adélia e Ivone tenham desenrolares interessantes, já que existem boas deixas para tanto.

É óbvio que os criadores jamais teriam imaginado, quando da produção da segunda temporada, o contexto global no qual ela chegaria ao público. No entanto, pela importância das discussões sobre antirracismo e, também, por sua atualidade, a série parece querer reforçar essa conexão entre a pauta e a obra. Que não se esqueça que o movimento dramatúrgico da sequência de “Coisa Mais Linda” foi fruto de movimentos críticos que, há um ano, ressaltavam e questionavam a branquitude da série, assim como a presença maior de homens em cargos de direção e roteiro em comparação à de mulheres. Quem sabe, numa eventual terceira temporada, a "abertura" que a série traz hoje - em si e em sua divulgação - possa se alargar e refletir na contratação de mulheres cis e trans pretas para filmar e contar essas e outras histórias.

Coisa Mais Linda

Nova temporada disponível na Netflix a partir de 19/6

Foto do João Gabriel Tréz

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