George Orwell (1903-1950) escreveu romances, reportagens, cartas e ensaios variados, mas em todos tratou, de formas distintas, da verdade. E, em uma época em que as chamadas fake news ajudam a viralizar inverdades, seus textos ganham uma importância exponencial. É o que justifica o lançamento de "Sobre a Verdade", seleção inédita de escritos de Orwell que têm como eixo a ideia da verdade. O livro, que a Companhia das Letras lança inicialmente apenas em e-book, traz conceitos que, embora escritos há várias décadas, se mantêm vivos.
"Os ensaios comprovam a sua ternura essencial, parte de sua personalidade tanto quanto o distanciamento e a contrariedade", observa Alan Johnson, político britânico, autor do prefácio. "E, ainda que ele esteja convencido de que conceitos como justiça, liberdade e verdade objetiva podem ser ilusórios, são ilusões poderosas nas quais as pessoas ainda acreditam".
Johnson observa que Orwell era um pensador político que jamais teve medo de adaptar suas ideias às novas circunstâncias, em vez de tentar submeter tais desenvolvimentos à rigidez de seu pensamento. "Provavelmente, no campo da esquerda, Orwell não era o único escritor que convivia com a atração pelo socialismo e a repulsa aos socialistas, mas foi o único a pôr no papel essa dicotomia", diz.
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"Sobre a Verdade" traz textos que, além de saborosos, tratam de temas pontuais, mas que poderiam perfeitamente ser adaptados à atualidade, em especial quando se trata de fake news. Na resenha "A Invasão Marciana", publicada em outubro de 1940 no "The New Statesman and Nation", Orwell analisa a famosa irradiação radiofônica que Orson Welles fez, dois anos antes, baseada em "A Guerra dos Mundos", romance de H. G. Wells.
O programa de rádio teve uma repercussão espantosa e imprevista, pois milhares de pessoas acreditaram ser, de fato, um programa de notícias que anunciava a invasão de marcianos em território americano. Acredita-se que cerca de 6 milhões de pessoas o ouviram e que mais de 1 milhão delas experimentaram algum tipo de pânico.
O programa se estruturou como uma sucessão de boletins de notícias, fato jornalístico habitualmente considerado verídico. "Pouquíssimos ouvintes americanos fizeram algum esforço de verificação", escreve Orwell, ao analisar uma pesquisa feita pela universidade de Princeton, constatando que as pessoas mais suscetíveis de serem afetadas eram os pobres, os menos instruídos e, sobretudo, aqueles que enfrentavam problemas financeiros ou eram infelizes no âmbito privado.
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"A conexão evidente entre infelicidade pessoal e prontidão para aceitar o inacreditável é aqui o achado mais interessante", observa Orwell. "Pessoas que estavam desempregadas ou à beira da falência por uma década talvez ficassem aliviadas ao saber do fim iminente da civilização. É um estado de espírito que levou nações inteiras a se lançar nos braços de um Redentor."
Entre 1942 e 1948, Orwell colaborou com exatos cem textos para o jornal britânico "Observer", compreendendo um período crucial na história da humanidade, ou seja, os anos finais da 2ª Guerra Mundial e o início da Guerra Fria - termo, aliás, cunhado por ele no ensaio "Você e a Bomba Atômica", publicado em outubro de 1945.
Alan Johnson nota que a eclosão da 2ª Guerra Mundial marcou a cristalização das concepções de Orwell. "Ele era um patriota que entendeu as ameaças do fascismo e do comunismo (o pacto entre Hitler e Stalin foi um ponto de inflexão crucial), e isso inspirou os seus dois romances mais conhecidos".
"A Revolução dos Bichos" é apontado como um alerta contra os males da revolução, enquanto "1984" era considerado pelo próprio Orwell como um alerta contra o totalitarismo de direita e de esquerda, e não de uma profecia. "No romance, ele imagina as consequências de uma filosofia política que coloca o poder acima da lei e sacrifica a liberdade individual pela interpretação de bem coletivo imposta pelo Partido", diz Johnson. "Surpreendente é o quanto continua a ser extraordinariamente relevante mesmo no século 21. A limpidez e a precisão da prosa preservaram o frescor do livro, e os seus temas - a importância da verdade objetiva e da distinção entre patriotismo e nacionalismo - continuam muitíssimo pertinentes na nossa época".
Johnson declara que a trajetória literária, política e filosófica de Orwell culminou numa derradeira obra magistral, que acabou sendo incorporada às nossas vidas. "A luta em defesa da verdade objetiva ainda é fundamental e, embora Eric Blair tenha morrido em 1950, George Orwell continua bem vivo". (Agência Estado)
Sobre a Verdade
George Orwell (tradução Claudio Marcondes)
Companhia das Letras
208 páginas
R$ 29,90